quinta-feira, 18 de setembro de 2014

ARTIGO (RMR)

A POLÍTICA LAICA
 Rui Martinho Rodrigues*


Debate-se a crença de Marina. Discute-se a moral privada. Apoiar, negar apoio ou guardar silêncio em tal campo tornou-se objeto de críticas veementes. Cobrar pronunciamentos desta natureza é parte de um intenso patrulheirismo.

Invoca-se o Estado laico sacralizando-se alguns valores ou contravalores. O sentido de “pecado” e de “heresia”, presente no discurso supostamente laico, demonizando divergências, é parte da pós-modernidade em que os conceitos, as identidades e os limites da realidade tornam-se movediços.

Invoca-se a benignidade praticando intolerância. Publicizar e oficializar valores, diabolizando uns, revestindo outros de exigibilidade e de sacralidade, restringindo escolhas de consciência é intolerância travestida de longanimidade, confundindo-a com renúncia ao direito à crítica, a valoração abstrata de condutas e ao direito de exortação, aconselhamento e de livre expressão do pensamento, confundido estas coisas com agressão.

A democracia não pode ter uma consciência oficial, nem pode reprimir consciências, inclusive com direito a livre manifestação do pensamento e à crítica. Quem deve ser laico é o Estado, não o cidadão. Temas de consciência não devem integrar a agenda política.

O Estado laico é a expressão da coexistência pacífica, conforme Locke, em “Carta acerca da tolerância”. Cuida de preservar a paz afastando as convicções pessoais das deliberações públicas. A res publica deve situar-se para além deste campo. Certas matérias devem ser mantidas na esfera da licitude, deixando a legalidade estrita para os temas seculares. 

Regulamentar o que é de foro íntimo implica restringir o campo da licitude e expandir a legalidade estrita com o sacrifício da liberdade negocial e de consciência. Isso produz melindres e intolerância em nome da tolerância, levando à judicialização das relações sociais, não obstante o judiciário já se achar assoberbado. Tudo vira processo judicial.

A ortodoxia econômica tendeu ao consenso, demonstrado pela sucessão de partidos contrários nos governos do Reino Unido, da Espanha, da França, dos EUA e por algum tempo no Brasil, sem que a política econômica fosse significativamente modificada. A ideia do Estado Provedor tornou-se hegemônica. A democracia tornou-se consenso. A diferença entre partidos políticos ficou difícil de demarcar.

Foi aí que os temas éticos e confessionais ressurgiram. A moralidade da vida privada foi introduzida no debate político, desafiando a liberdade de consciência e as liberdades individuais em geral. A indiferença do proletariado ao apelo revolucionário levou à busca de outras opções para a semeadura política. Passou-se a convocar os magoados pelas discriminações e as injustiças praticadas em nome de valores morais.

A tolerância foi confundida com renúncia à liberdade de consciência e ao direito à crítica. Mas tolerância não é indiferença nem é respeito. É coexistência pafífica, como dito. A regulamentação da vida privada se mostra na publicização do direito privado, sem a menor preocupação com a diminuição do campo da licitude, da liberdade negocial, substituída pela legalidade estrita.


Tinha de ser assim, ou o quixotismo pós-moderno não teria a sua Dulcineia. O moinho de vento eleito foi o combate à prática da ascese e da contenção moral, em meio a uma sociedade permissiva e hedonista. Nem Cervantes teve tanta imaginação.



*Rui Martinho Rodrigues
Professor – Advogado
Historiador - Cientista Político
Presidente da ACLJ
Titular de sua Cadeira de nº 10


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