A POLÍTICA
LAICA
Rui
Martinho Rodrigues*
Debate-se
a crença de Marina. Discute-se a moral privada. Apoiar, negar apoio ou guardar silêncio
em tal campo tornou-se objeto de críticas veementes. Cobrar pronunciamentos desta
natureza é parte de um intenso patrulheirismo.
Invoca-se
o Estado laico sacralizando-se alguns valores ou contravalores. O sentido de
“pecado” e de “heresia”, presente no discurso supostamente laico, demonizando
divergências, é parte da pós-modernidade em que os conceitos, as identidades e
os limites da realidade tornam-se movediços.
Invoca-se
a benignidade praticando intolerância. Publicizar e oficializar valores,
diabolizando uns, revestindo outros de exigibilidade e de sacralidade,
restringindo escolhas de consciência é intolerância travestida de longanimidade,
confundindo-a com renúncia ao direito à crítica, a valoração abstrata de
condutas e ao direito de exortação, aconselhamento e de livre expressão do
pensamento, confundido estas coisas com agressão.
A
democracia não pode ter uma consciência oficial, nem pode reprimir
consciências, inclusive com direito a livre manifestação do pensamento e à
crítica. Quem deve ser laico é o Estado, não o cidadão. Temas de consciência
não devem integrar a agenda política.
O
Estado laico é a expressão da coexistência pacífica, conforme Locke, em “Carta
acerca da tolerância”. Cuida de preservar
a paz afastando as convicções pessoais das deliberações públicas. A res publica deve situar-se para além
deste campo. Certas matérias devem ser mantidas na esfera da licitude, deixando
a legalidade estrita para os temas seculares.
Regulamentar o que é de foro
íntimo implica restringir o campo da licitude e expandir a legalidade estrita
com o sacrifício da liberdade negocial e de consciência. Isso produz melindres
e intolerância em nome da tolerância, levando à judicialização das relações
sociais, não obstante o judiciário já se achar assoberbado. Tudo vira processo
judicial.
A
ortodoxia econômica tendeu ao consenso, demonstrado pela sucessão de partidos
contrários nos governos do Reino Unido, da Espanha, da França, dos EUA e por
algum tempo no Brasil, sem que a política econômica fosse significativamente
modificada. A ideia do Estado Provedor tornou-se hegemônica. A democracia tornou-se
consenso. A diferença entre partidos políticos ficou difícil de demarcar.
Foi
aí que os temas éticos e confessionais ressurgiram. A moralidade da vida
privada foi introduzida no debate político, desafiando a liberdade de
consciência e as liberdades individuais em geral. A indiferença do proletariado
ao apelo revolucionário levou à busca de outras opções para a semeadura
política. Passou-se a convocar os magoados pelas discriminações e as injustiças
praticadas em nome de valores morais.
A
tolerância foi confundida com renúncia à liberdade de consciência e ao direito
à crítica. Mas tolerância não é indiferença nem é respeito. É coexistência
pafífica, como dito. A regulamentação da vida privada se mostra na publicização
do direito privado, sem a menor preocupação com a diminuição do campo da
licitude, da liberdade negocial, substituída pela legalidade estrita.
Tinha
de ser assim, ou o quixotismo pós-moderno não teria a sua Dulcineia. O moinho
de vento eleito foi o combate à prática da ascese e da contenção moral, em meio
a uma sociedade permissiva e hedonista. Nem Cervantes teve tanta imaginação.
*Rui Martinho Rodrigues
Professor – Advogado
Historiador - Cientista Político
Presidente da ACLJ
Titular de sua Cadeira de nº 10
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