domingo, 14 de dezembro de 2014

CRÔNICA (RV)

GUIDA
Reginaldo Vasconcelos*

O mundo, o vasto mundo de Drumond, quase não percebeu que a Guida nasceu, viveu 87 anos e dormindo partiu placidamente para o Éden.

Ela não obteve títulos, nunca concorreu a nada nos certames da vida, e, como Brás Cubas, não transmitiu o seu legado genético a nenhuma criatura. Sequer aguardou namorados na varanda ou quadriculou o tempo nas filas dos mercados. Nasceu, foi infanta e morreu octogenária, mas ainda menina, zelando sua casa de bonecas.

A mãe não podia sequer morrer, temendo que a  Guida ficasse ao desamparo, que o mundo a devorasse, que a vida fosse madrasta com aquela que seria criança para sempre. “Por mim, não. Pode morrer tranquila!”, respondeu ela mesma certa vez ainda mocinha, ao ouvir acidentalmente o comentário.

De fato a mãe morreu cedo, e a Guida lhe sobreviveu por meio século, saudável e feliz. Na sua juventude a irmã mais velha lhe disciplinava as meninices tardias, na velhice a mais nova lhe supriu a maternidade, e em torno dela foram brotando ramagens de sobrinhos, e de sobrinhos netos, e de sobrinhos bisnetos, árvore genealógica cujo crescimento ela acompanhava com atenção e interesse. 

Não era louca, nem ausente. Pelo contrário, era como uma criança, mas arguta e irônica. Sua memória prodigiosa catalogava todos os fatos do passado, todos os dados da família, todas as datas. Os que foram envelhecendo com ela e que precisavam se lembrar de algo que já se lhes embotara no bestunto, ou os das novas gerações que quisessem conhecer detalhes antigos do clã para o seu deleite histórico, recorriam à Guida, que a resposta era segura e imediata.


Como toda criança, Guida era opiniosa e independente, tinha antipatias e preferências, das quais ninguém a demovia, e somente quando uma gripe ou outra enfermidade a alcançava ela ficava insegura e obediente a todas as recomendações que lhe fizessem. Na fotografia antiga da família na fazenda ela pequenina posa de costas, e a mãe lembrava que embirrara com o fotógrafo.

De seu, Guida tinha um pensão financeira e a casa em que morava, em companhia da empregada que, desde a morte da irmã mais velha com quem morava, a irmã mais nova lhe impunha a contragosto, e essa serviçal, em sinal de protesto, ela chamava simplesmente “Criatura”.

Dos seus proventos Guida fazia questão de custear o primeiro papeiro de cada uma das novas crianças que nascia na família, e mais tarde a primeira mochila escolar, e do gado que ela herdara dos pais e era mantido nas fazendas dos irmãos ela mandava reservar uma novilha para os sobrinhos meninos que quisesse agraciar, recomendando que aquele patrimônio rentável e fungível revertesse para a compra do futuro anel de grau, o que foi sempre cumprido e respeitado.

Na borda do túmulo da Guida as duas irmãs remanescentes e os tantos sobrinhos, os decanos dentre eles já cidadãos encanecidos, ostentando os anéis de grau respectivos, e relembrando em sentidos discursos a crônica divertida que a vida da morta querida descreveu  contando histórias infantis aos mais novos, brincando com as meninas de fazer guisados no quintal, praguejando com os maridos que levantassem a voz para as mulheres da família em sua presença.

O último movimento da colher de pedreiro que selou a sua cova interrompeu o traço azul que Deus descreveu em linha reta, entre os tantos desenhos revolutos e coloridos da vida dos parentes entre os quais ela medrou e conviveu, partindo como um enigmático querubim que por fim voltasse à legião celeste a que pertence.    


   
*Reginaldo Vasconcelos
Advogado e Jornalista
Titular da Cadeira de nº 20 da ACLJ

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