GUIDA
Reginaldo Vasconcelos*
O mundo, o vasto mundo de Drumond,
quase não percebeu que a Guida nasceu, viveu 87 anos e dormindo partiu
placidamente para o Éden.
Ela não obteve títulos, nunca
concorreu a nada nos certames da vida, e, como Brás Cubas, não transmitiu o seu
legado genético a nenhuma criatura. Sequer aguardou namorados na varanda ou quadriculou
o tempo nas filas dos mercados. Nasceu, foi infanta e morreu octogenária, mas ainda
menina, zelando sua casa de bonecas.
A mãe não podia sequer morrer,
temendo que a Guida ficasse ao
desamparo, que o mundo a devorasse, que a vida fosse madrasta com aquela que
seria criança para sempre. “Por mim, não.
Pode morrer tranquila!”, respondeu ela mesma certa vez ainda mocinha, ao
ouvir acidentalmente o comentário.
De fato a mãe morreu cedo, e a
Guida lhe sobreviveu por meio século, saudável e feliz. Na sua juventude a irmã
mais velha lhe disciplinava as meninices tardias, na velhice a mais nova lhe
supriu a maternidade, e em torno dela foram brotando ramagens de sobrinhos, e
de sobrinhos netos, e de sobrinhos bisnetos, árvore genealógica cujo
crescimento ela acompanhava com atenção e interesse.
Não era louca, nem ausente. Pelo
contrário, era como uma criança, mas arguta e irônica. Sua memória prodigiosa
catalogava todos os fatos do passado, todos os dados da família, todas as
datas. Os que foram envelhecendo com ela e que precisavam se lembrar de algo que já
se lhes embotara no bestunto, ou os das novas gerações que quisessem conhecer
detalhes antigos do clã para o seu deleite histórico, recorriam à Guida, que a
resposta era segura e imediata.
Como toda criança, Guida era
opiniosa e independente, tinha antipatias e preferências, das quais ninguém a
demovia, e somente quando uma gripe ou outra enfermidade a alcançava ela ficava
insegura e obediente a todas as recomendações que lhe fizessem. Na fotografia
antiga da família na fazenda ela pequenina posa de costas, e a mãe lembrava que
embirrara com o fotógrafo.
De seu, Guida tinha um pensão
financeira e a casa em que morava, em companhia da empregada que, desde a morte
da irmã mais velha com quem morava, a irmã mais nova lhe impunha a contragosto,
e essa serviçal, em sinal de protesto, ela chamava simplesmente “Criatura”.
Na borda do túmulo da Guida as
duas irmãs remanescentes e os tantos sobrinhos, os decanos dentre eles já
cidadãos encanecidos, ostentando os anéis de grau respectivos, e relembrando em
sentidos discursos a crônica divertida que a vida da morta querida descreveu – contando histórias infantis aos mais novos, brincando com as meninas de fazer
guisados no quintal, praguejando com os maridos que levantassem a voz para as
mulheres da família em sua presença.
O último movimento da colher de
pedreiro que selou a sua cova interrompeu o traço azul que Deus descreveu em
linha reta, entre os tantos desenhos revolutos e coloridos da vida dos parentes
entre os quais ela medrou e conviveu, partindo como um enigmático querubim que
por fim voltasse à legião celeste a que pertence.
*Reginaldo Vasconcelos
Advogado e Jornalista
Titular da Cadeira de nº 20 da ACLJ
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