sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

APRECIAÇÃO LITERÁRIA (VM)

BELEZA E FORMA INUSITADAS
NOS VERSOS DO CONTERRÂNEO
JOSÉ REBOUÇAS MACAMBIRA,
MEU PATRONO NA ACADEMIA
(Última Parte)
Vianney Mesquita*


Um soneto impecável vale, sozinho, um grande poema. (Nicholas Boileau Despréaux, crítico literário e poeta. *Paris, 01.11.1636; 13.03.1711).


José Fernandes Sampaio, o Zé Sampaio

Privava, então, da amizade do conterrâneo José Fernandes Sampaio, o Zé Sampaio, farmacêutico prático, amanuense,  funcionário da Prefeitura e companheiro de pescaria no açude São José, que, apesar de ter aprendido apenas na autodidaxia da vida e em leituras esparsas, gostava, também, de versos.

Zé Sampaio - filho do Sr. Virgílio e sobrinho do Sr. Mechico e do Padre Gumercindo Sampaio - antegozava a pretensa publicação de certo livro, ao me fazer acreditar que este estava pronto de há muito, sem, no entanto, jamais mostrar seus teores. O fato é que, uma vez, fui à sua residência, no Henrique Jorge, já aqui em Fortaleza, e eis que ele me mostrou uma capa que mandara confeccionar para o Palmácia na Risca das Escrituras (com a fotografia da Matriz de São Francisco, na Praça Padre Perdigão Sampaio), no qual, segundo ele, era narrado um rol de castigos e anátemas, antevistos pela Bíblia Sagrada, para as transgressões e iniquidades cometidas pelos palmacianos no decurso de sua história. Zé Sampaio, agora no andar de cima, jamais levou a lume a ideia, certamente, porque era apenas projeto, embora imensa vontade lhe não faltasse.

Recitava sempre – e me fazia crer serem dele, porém, conquanto jamais afirmasse, se calava quando alguém isso perguntava – dois lindos sonetos, um deles bem mais artístico do que o outro. Refiro-me a PAPAGAIO DE PAPEL, o qual vale a pena reproduzir agora, sem comentário, e LÁBIOS VIRGINAIS, de que farei ligeira glosa.

Seis horas, o céu mudo, a noite perto./ Não se vê uma luz no firmamento; / Apenas um bonito papagaio / Volteia sacudido pelo vento.

Parece estar livre; mas alguém / O manobra de longe como entende. / Ele sobre, ele desce em viravoltas - / Mas, coitado! Se acaso se desprende...

Ainda voará sem direção, / Brincará nas alturas um momento,/ Para depois se espatifar no chão.

Eu sou qual papagaio de papel:/ Aparento ser livre, todavia Estou preso também por um cordel.

Em um jornalzinho que editei, no meu tempo de Escola Industrial, hoje Instituto Federal de Educação e Tecnologia do Ceará – IFCE, O Concludente, publiquei esse poema tendo J. Sampaio por autor. Doei-lhe um exemplar, o qual, satisfeito, ele guardou, sem dizer palavra.

Também Lábios Virginais ele declamava, porém incluindo  três ou quatro expressões, as quais, depois, vi serem realmente equívocas e sem sentido.

Dizia eu, durante muitos anos, os dois sonetos para pessoas literatas e bem informadas, como, e.g., meus irmãos Teobaldo Campos de Mesquita (docente da UFC e da UVA) e Raimundo Campos de Mesquita (cirurgião-dentista e secretário de Saúde de Palmácia por duas vezes), que me não davam pistas da autoria, fato a me deixar intrigado, pois a forma de rima das grades era por demais sofisticada, em especial, nos Lábios Virginais, denotando pouca possibilidade de serem os poemas da colheita de pessoas sem conhecimento de versificação.

Eis que, muitos e muitos anos depois, entendi haver ele decorado erradamente, pois eram nada mais do que da autoria de José Rebouças Macambira, componentes de Musa de Aquém e de Além, o primeiro composto em 1942 e o outro em 1944, publicados nesse livro em 1981.

Retrato na sequência Lábios Virginais.

A minha’alma é feliz, embora presa / Da tu’alma no cárcere de luz, / Pois a vida sem ti fora uma cruz / Talvez muito pesada para mim.

És tu quem me dá vida (1) e Fortaleza, / Por quem luto no mar do vendaval (2) / Animando no peito um ideal / Bebido neste amor que não tem fim.

Se por vezes a nuvem de um desgosto / Escura se projeta no meu rosto, / Na hora em que te encontro se desfaz.

É que tens (3) o poder (4) misterioso / De mudar minhas lágrimas em gozo / Com o frescor de teus lábios virginais.

Remate

Conforme é dado ao consultor divisar, existe por demais beleza nesta composição, onde meu patrono e conterrâneo emprega uma variedade de expedientes figurais, peculiares aos códigos da Poética, como, por exemplo, as metáforas e as elisões (como em tu’alma), para conceder estesia especial às suas produções obedientes a padrões métricos (ou pés), em segmentos da Musa de Aquém e de Além, ao comprovar a habilidade que detinha ao versejar com graça no sistema de rimas ABBC – ABBC – AAB – AAB. De modo assertivo, ainda, denota a manifestação do conhecimento científico detido sobre as estruturas rítmicas de versos e estâncias dotados de musicalidade, aliás matérias das quais cuidou na sua produção científica, ao editar os citados Português Estrutural e Estrutura Musical do Verso, exempli gratia.

Há de assentir o consulente no fato de ser pouco comum, como ocorrente no decassílabo Lábios Virginais, nos quartetos, os primeiros versos (A) consoarem com C, derradeiras linhas das estâncias, sendo, porém, bastante usuais as rimas BB – variantes de tempo e espaço - para o segundo e o terceiro versos do poema.

Caso o leitor não pense como eu, de mim discordando, intente examinar com demora o soneto sob observação e, ao cabo do estudo, certamente, permutará sua opinião. É que escolhi este decassilábico português, desde há muito, como um dos dez mais belos da Língua de José Rebouças Macambira, palmaciano a honrar as letras científicas do ecúmeno português, nas nove comunidades lusofônicas – no terreno da Semasiologia – e literárias - no campo prolífero da poesia.

1 José Fernandes Sampaio decorou como quem me dá luz.
2 Ele dizia a “palavra” inexistente dunivendal, o que me deixava bastante intrigado, até descobrir a verdade da autoria e conferir o poema.
3 JFS memorizou, equivocadamente, “porque tens”.
4 Fixou como porque tens o fulgor misterioso.


*Vianney Mesquita 

 Docente da UFC 
Acadêmico Titular da Academia Cearense da Língua Portuguesa  
Acadêmico Emérito-titular da Academia Cearense de Literatura e Jornalismo 
Escritor e Jornalista

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