BODE EXPIATÓRIO
Iolanda Campelo Andrade*
Se sofreres uma injustiça, consola-te, porquanto a verdadeira desgraça é cometê-la. (PITÁGORAS. *Samos, 571 a.C. + Metaponto – Itália- 495 a. C).
Corria celeremente 1970. A quadra momina em Palmácia ainda não portava o nome CARNAPAL e a folia transcorria animada, não mais na Praça da Matriz, mas no Centro Comunitário Clementino Rodrigues Campelo (hoje, CRAS), quando um amigo, muito amigo, já bem muiado, se dirigiu à cantina do local para comprar uma cerveja.
Associando
sua invejável inteligência (sou suspeita, mas isto é comprovado) à deturpação
do líquido espirituoso em sua mente, meu amigo tirou cinco cruzeiros do bolso e
rasgou a nota ao meio para pagar a ceva que,
à época, custava dois e cinquenta.
Ante
a negação do vendedor em não aceitar o dinheiro rasgado, seu circunstante
justificou: - mas, rapaz, a metade de cinco é dois e cinquenta, não é? Então
está aqui o dinheiro, estou pagando uma cerveja...
O
vendedor, pacientemente, ainda quis mostrar a veracidade dos fatos, mas o
rapaz, com os couros quentes - e a
cabeça também - e ainda metido a arrochado quando bebia, passou a agir com
certa violência, empurrando algumas garrafas vazias sobre o balcão. E deu no
que deu – a (primeira) vítima foi ele próprio, que se cortou em várias partes
do braço, trazendo tumulto à festa.
Quando
a par do ocorrido, cheguei a tempo de o ver ensanguentado e minhas manas
tentando acalmá-lo, ação da qual também participei. Minha irmã mais velha disse
para eu chamar o resto dos irmãos e irmos para casa, pois, com esta ocorrência,
falecia razão para ali permanecermos. Retruquei. Como deixar de curtir aquela
noite de carnaval que apenas começava? Fiz ouvidos de vendedor ambulante turco
e fiquei.
Esqueci-me
de mencionar que tínhamos visita em casa. Era o pessoal da escola onde
ensinávamos eu e Dodô (minha irmã, Auxiliadora). Esse estabelecimento fica em
Fortaleza. Era minha primeira experiência como docente diplomada e vinha me
saindo muito bem.
Estavam
todos em Palmácia, passando o carnaval – meus diretores e as colegas
professoras. Eles, também, presenciaram o ocorrido na festa e, em solidariedade
às manas, resolveram igualmente sair dali.
Vejamos,
então: se ainda existia alguma pessoa da casa do Seu Renato no baile, era eu. E tal pessoa nem de longe pensava em
deixar a folia para ir embora (risos), pois a diversão estava a mil, todo mundo
brincando em cordões, acompanhando as marchinhas carnavalescas de que tanto
guardo recordação.
Ninguém
ficava parado, todos pulavam e cantavam, aquecidos pelo calor dos corpos em
atrito e a química dos corações pulsando, quando os olhares adolescentes se
encontravam. Era a magia de um tempo ditoso, saudoso...
Encontrava-me
atada a um cordão de gente pulando, quando olhei para o portão do Centro
Comunitário e quedei petrificada! Lá estava o Papai com uma corda azul, de
armar rede, em uma das mãos e a outra em aceno, me chamando. Recordo bem: o
cabo dava diversas voltas e a cara de raiva do Velho era grande!
Num
átimo, me desliguei do cordão e corri na direção do aceno. E o Chefe nada falou
... Nem precisava. Pernas, pra que as quero?! Desabei em direção de casa e o
Homem em suas largas passadas a me acompanhar.
Jamais
havia subido tão ligeiro o alto do tio Luís Rebouças como nessa noite! Usei
todo o vigor de adolescente para chegar a casa antes do Papai. Malgrado jamais
haver apanhado dele – nem de ninguém – estava temerosa. Não com medo de levar
umas boas (e, aqui prá nós, merecidas) lapadas na rua e me envergonhar, pois
não havia ninguém observando. O que eu queria era não dar a entender para meus
diretores e colegas de escola o fato de que estava sendo enxotada de uma festa
tangida por um relho ... Por isso eu corria ... O esforço, entretanto, foi em
vão.
Não
penei sob o ponto de vista físico, mas a dor moral me abalou deverasmente.
Todos estavam na varanda de casa e ligaram o quebra-cabeça.
Para
infelicidade minha, nessa história, dei uma de BODE EXPIATÓRIO.
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