KIT RAPARIGA
Marcos Maia Gurgel*
Da
minha terra recebo um telefonema, em princípio estranhíssimo. Era um colega dentista
com atuação em várias frentes de odontologia na região, porém apenas como
clínico.
Ele
me pediu para ajudar uma adolescente inocente, uma jovem que, segundo ele, precisava
completar o seu sonhado “kit rapariga” – e foi logo adiantando o assunto,
talvez por notar a minha perplexidade e o meu silêncio.
–
Kit rapariga?
–
Pois bem – disse ele:
Falei
com um colega do Serviço Público – aliás, louvores ao Estado por proporcionar
esse tipo especializado de tratamento – e ele prontamente me atendeu.
Enfim,
a bela moça conterrânea voltou para o nosso Município (dela, meu e do colega que intercedeu em seu favor), já pronta para desfilar, e abafar, e amar. O seu kit rapariga
estava completo.
NOTA
DA REDAÇÃO
Vários leitores nos consultam sobre por que
uma motocicleta cinquentinha, um celular de última geração e um aparelho
ortodôntico constituiriam um “kit rapariga”.
A repercussão dessa croniqueta do satírico
Marcos Gurgel dá sinais de que se trata de uma peça especial de literatura ligeira,
capaz de atrair a atenção do leitorado e de suscitar indagações.
Essa capacidade de revolver o espirito do
leitor, distraindo-o do banal e do previsível, fazendo-o pensar, emocionar-se, indignar-se,
escrutinar as entrelinhas, é a maior virtude que se pode constatar de um texto
escrito e publicado.
É cabível, corriqueiro e até necessário que o
receptor de uma mensagem peça esclarecimentos a quem declara ou informa algo, para
que se expresse de forma mais clara e inteligível.
Porém, não se pode pedir explicações ao autor
de uma poesia, de uma letra de música, de uma crônica, enfim, de um texto literário
de vocação conotativa, sobre o que ele quis dizer – muito menos a explicação de
uma anedota. É entender, ou calar.
Mesmo assim, para propor ao leitorado um exercício
intelectual inteligente, lembramos que se pode facilmente intuir que os três
itens referidos representem para uma adolescente sertaneja a sua plena emancipação
social.
Isso porque lhe dá mobilidade para ir e vir,
trânsito virtual na Internet franqueado, enquanto o aparelho ortodôntico, como se sabe,
tornou-se sonho de consumo dos meninos e meninas, um modismo da "geração saúde", um
item de status juvenil.
A acepção clássica da palavra “rapariga” é o feminino
de “rapaz” – patamar a que moços e moças aspiram e atingem ao evoluir da adolescência
– de modo que se assim se expressou o autor, assim a deve entender o leitor bem advertido.
Bem, resta aos incautos cair na “pegadinha” de
resgatar a conotação preconceituosa que o vocábulo “rapariga” adquiriu no
passado, nos rincões do Ceará – e talvez seja exatamente isso que,
matreiramente, o escritor quis provocar.
Vai ver, o dentista que requereu o benefício
para a moça, qualificada expressamente na matéria como “adolescente” e “inocente”,
tenha ele participado da grande diáspora de jovens odontólogos brasileiros na
direção de Portugal, na década de 90, e por lá tenha escoimada a palavra “rapariga”
da conotação depreciativa que ela adquiriu no Ceará.
Talvez tenha aplicando a palavra, daquela vez, ao telefone, no seu sentido regular que se adota no país que é o pai da língua –
e o cronista então percebeu que ali havia o tema pronto para essa crônica burlesca. Sabe-se lá?
Seja como for, fazer lucubrações interpretativas é o grande deleite
de quem aprecia consumir textos literários e contemplar obras de arte. E proporcionar isso é o grande mérito dos autores.
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