quarta-feira, 1 de agosto de 2018

CRÔNICA - Kit Rapariga (MMG)


KIT RAPARIGA
Marcos Maia Gurgel*

Da minha terra recebo um telefonema, em princípio estranhíssimo. Era um colega dentista com atuação em várias frentes de odontologia na região, porém apenas como clínico. 

Ele me pediu para ajudar uma adolescente inocente, uma jovem que, segundo ele, precisava completar o seu sonhado “kit rapariga” – e foi logo adiantando o assunto, talvez por notar a minha perplexidade e o meu silêncio.

– Kit rapariga?

– Pois bem – disse ele:

– Ela diz que já tem uma moto cinquentinha, tem um aparelho celular smartphone de última geração, e, portanto, só precisa de um aparelho ortodôntico para completar o seu kit e ter direito a esse título.

Falei com um colega do Serviço Público – aliás, louvores ao Estado por proporcionar esse tipo especializado de tratamento – e ele prontamente me atendeu.

Enfim, a bela moça conterrânea voltou para o nosso Município (dela, meu e do colega que intercedeu em seu favor), já pronta para desfilar, e abafar, e amar. O seu kit rapariga estava completo.



NOTA DA REDAÇÃO

Vários leitores nos consultam sobre por que uma motocicleta cinquentinha, um celular de última geração e um aparelho ortodôntico constituiriam um “kit rapariga”.

A repercussão dessa croniqueta do satírico Marcos Gurgel dá sinais de que se trata de uma peça especial de literatura ligeira, capaz de atrair a atenção do leitorado e de suscitar indagações.

Essa capacidade de revolver o espirito do leitor, distraindo-o do banal e do previsível, fazendo-o pensar, emocionar-se, indignar-se, escrutinar as entrelinhas, é a maior virtude que se pode constatar de um texto escrito e publicado.

É cabível, corriqueiro e até necessário que o receptor de uma mensagem peça esclarecimentos a quem declara ou informa algo, para que se expresse de forma mais clara e inteligível.

Porém, não se pode pedir explicações ao autor de uma poesia, de uma letra de música, de uma crônica, enfim, de um texto literário de vocação conotativa, sobre o que ele quis dizer – muito menos a explicação de uma anedota. É entender, ou calar.

Mesmo assim, para propor ao leitorado um exercício intelectual inteligente, lembramos que se pode facilmente intuir que os três itens referidos representem para uma adolescente sertaneja a sua plena emancipação social.

Isso porque lhe dá mobilidade para ir e vir, trânsito virtual na Internet franqueado, enquanto o aparelho ortodôntico, como se sabe, tornou-se sonho de consumo dos meninos e meninas, um modismo da "geração saúde", um item de status juvenil.

A acepção clássica da palavra “rapariga” é o feminino de “rapaz” – patamar a que moços e moças aspiram e atingem ao evoluir da adolescência – de modo que  se assim se expressou o autor, assim a deve entender o leitor bem advertido.

Bem, resta aos incautos cair na “pegadinha” de resgatar a conotação preconceituosa que o vocábulo “rapariga” adquiriu no passado, nos rincões do Ceará – e talvez seja exatamente isso que, matreiramente, o escritor quis provocar.

Vai ver, o dentista que requereu o benefício para a moça, qualificada expressamente na matéria como “adolescente” e “inocente”, tenha ele participado da grande diáspora de jovens odontólogos brasileiros na direção de Portugal, na década de 90, e por lá tenha escoimada a palavra “rapariga” da conotação depreciativa que ela adquiriu no Ceará.

Talvez tenha aplicando a palavra, daquela vez, ao telefone, no seu sentido regular que se adota no país que é o pai da língua – e o cronista então percebeu que ali havia o tema pronto para essa crônica burlesca. Sabe-se lá? 

Seja como for, fazer lucubrações interpretativas é o grande deleite de quem aprecia consumir textos literários e contemplar obras de arte. E proporcionar isso é o grande mérito dos autores.  
         

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