quinta-feira, 9 de agosto de 2018

ARTIGO - O Que Disse o General Mourão e o Que Ele Quis Dizer (RV)

O QUE DISSE O
GENERAL MOURÃO
E O QUE ELE QUIS DIZER
Reginaldo Vasconcelos*



Normalmente, em períodos de eleições, para os candidatos vale a regra de que “o que não é preciso dizer, é preciso não dizer”, porque, havendo qualquer brecha interpretativa maldosa na declaração feita, os adversários a descontextualizarão e a grande mídia cuidará de espetacularizar os desdobramentos.


Mas, no caso da chapa verde-oliva à Presidência da República, encabeçada pelo Capitão Bolsonaro, essa premissa clássica não vigora, pois a repercussão de suas bravatas mais incitam que desanimam os seus sequazes – e mais desconcertam os seus adversários e detratores.

O General Antônio Mourão, para analisar o caráter da Nação Brasileira, tomou como base a índole de cada um dos três povos que a formaram, disparando um petardo muito bem assestado sobre os grupos defensores das ditas “minorias sociais”, nos quais sua chapa à Presidência certamente não tem votos.

Todavia, como ele mesmo frisou ao ser cobrado, o que ele disse tem uma boa interpretação científica. Costumo dizer que a melhor leitura da nossa realidade étnica não envolve dívidas morais, nem ressentimentos raciais, até porque todas as pessoas de famílias brasileiras antigas, que são a maioria, têm que se considerar fruto do cadinho étnico que formou a brasilidade.   

Na minha opinião, a partir do ano de 1.500, três povos foram convocados pela História para fundar uma nova nação, e cada um deles participou da tarefa de acordo com o estágio evolucionário em que então se encontrava – nenhum deles vivendo, naquele momento, uma apoteose civilizatória gloriosa.

Os lusitanos, os “patinhos feios” das monarquias da Europa, pobres e historicamente massacrados por seguidas revoluções e guerras civis, acossados ainda por mouros, árabes, espanhóis.

O único recurso que lhes restava era aventurar-se mar afora – tendo por fim que defender de franceses e holandeses suas colônias de além-mar, e depois transferir toda a Corte e seus áulicos ao Brasil, fugindo da invasão napoleônica.

Os africanos, por seu turno, vivendo naquele continente sáfaro e conflagrado, em que, como até hoje acontece, suas tribos se digladiavam com frequência, naquele tempo escravizando e vendendo as populações vencidas para as novas possessões dos europeus encravadas nas Américas.

Os autóctones brasileiros, por sua vez, isolados na floresta tropical, ainda estavam na Idade da Pedra. Vivian nus, eram ágrafos, mal dominavam o fogo, não conheciam a roda, não dispunham do ferro, muito menos dos metais preciosos que os andinos já garimpavam, fundiam e moldavam.


Não tinham alvenaria, limitando-se a construções de  troncos e palhas. Não possuíam cães ou cavalos – aliás, o seu único animal domesticado era o pato comum – esse mesmo que ainda se vê pelos terreiros dos sertões.

Sua propalada “indolência” a que se referiu o General, que é registrada por antropólogos renomados, não era um estigma genético, mas consequência cultural do seu ambiente, já que eram coletores e caçadores dentro de uma selva dadivosa.

Muito pouco cultivavam, não dispunham do cloreto de sódio, não conservavam nem estocavam alimentos, de modo que morgavam na oca a maior parte do tempo, para levantarem-se da rede esporadicamente, somente quando sentiam fome.

Mourão, por outra, atribui ao colonizador ibérico o complexo de vira-lata com que Nelson Rodrigues nos tachou – que não o fez para nos diminuir, mas, ao contrário, para nos conscientizar e nos exorcizar da notória baixa-estima portuguesa – tão grave que aquele país nem considera que esteja inserido na Europa.

Já a “malandragem” que Antônio Mourão imputou aos africanos se refere à alegria e à esperteza que os negros manifestam – sem relação semântica com desonestidade ou com preguiça. Está na jovialidade do futebol catimbado, na malemolência do samba, na ginga da capoeira, na alegria do carnaval.  

Está na picardia de um Moreira da Silva e de uma Elza Soares; na vivacidade de um Jair Rodrigues e de um Carlinhos Brown; nos dribles desconcertantes de um Garrincha ou de um Neymar; na alegria e na molecagem da Juju Todynho e do Nego do Borel, ainda por exemplo – atributos que realmente não herdamos dos índios, nem vieram com os brancos daquela triste Península Ibérica do passado.

A palavra “malandro” já designou um tipo social urbano que havia no Rio de Janeiro durante a primeira metade do Século XX, com prevalência de negros, que se vestia, se portava e falava de maneira singular, e que era discriminado pelo seu exotismo e perseguido pela velha polícia de costumes.

Esse tipo característico foi registrado pelos intelectuais da década de 20, João do Rio e Lima Barreto, bem como tratado por Mário de Andrade e por Sergio Buarque de Holanda, que o via como ícone do “homem cordial”. E foi essa subcultura urbana brasileira que inspirou Walt Disney a criar o papagaio Zé Carioca, personagem simpática e bom caráter.


Na nossa música popular o termo já foi despido de qualquer desdouro, quando Bezerra da Silva compõe o samba “Malandro é Malandro, Mané É Mané”, e quando Cazuza lança a canção “Malandragem” – “Eu só peço a Deus, um pouco de malandragem”.

O fato é que a parte mais relevante da cultura brasileira veio da África – seja na música, seja na dança, na culinária e na fé religiosa, sincretizada com crenças e ritos trazidos da Europa pelo catolicismo e pela cristandade em geral, de modo que ser malandro não é vergonhoso, e ser afrodescendente não é um labéu. E essa é a maneira escorreita e antirracista de interpretar o General.



      

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