UM CONTO DA VIDA REAL
Reginaldo Vasconcelos*
Inês
Mapurunga é acadêmica da ACLJ, titular da Cadeira de nº 35, cujo Patrono
Perpétuo, por escolha dela mesma quando da fundação da sua cátedra vitalícia,
em 2011, é Alfredo Carneiro de Miranda, seu velho pai, ainda presente ao mundo
até então, mas já mentalmente ausente das tribulações materiais, até que em
2014 seu espírito foi a Deus.
Esta
semana passada, Inês perdeu um pacote de dinheiro público com que faria
pagamentos em uma aldeia quilombola aonde ia trabalhar, cumprindo a sua função
profissional, a serviço do Governo do Estado.
O
numerário sumiu-lhe durante a viagem no automóvel oficial, sem hipótese de que
lhe tivesse sido subtraindo por alguém, vez que ela não se afastara por um
instante da sua bolsa a tiracolo. Mistério e angústia, prejuízo e desespero,
pois o valor era expressivo para ela.
A
chefia, informada no dia seguinte, sofreu solidária com a Inês, mas a
dificuldade de provar sua versão improvável a esmagava. Não era apenas o esforço ingente que teria de
fazer para repor a quantia ao cofre público – o que efetivamente faria – mas
antes o seu impoluto e valioso conceito pessoal junto aos colegas de trabalho,
que restasse ameaçado, era o grande componente de seu sofrimento moral naquele
transe.
Aí
Inês rezou, e ocorreu-lhe dirigir ao pai e patrono acelejano falecido uma
oração especial, pedindo-lhe inspiração sobre como agir, requerendo luz sobre
os fatos da viagem, solicitando indicação que desvendasse aquele perverso
segredo que o mau fado lhe impunha.
A
elevação da alma a Deus, com a intervenção espiritual do velho pai, a fez
lembrar que sentira uma indisposição já na partida da viagem, e que enquanto o
motorista abastecia o carro ela procurara a farmácia em frente ao posto para
comprar um analgésico.
Ela
então se socorreu de um amigo acadêmico para voltar no carro dele à drogaria, e
o proprietário lhe devolveu incontinente o pacote recheado de maços de notas,
todos intactos, que ao procurar a carteira na bolsa para pagar o remédio, na
aflição de sua dor, ela deixara cair sobre o balcão.
Com o bendito pacote de dinheiro voltou Inês ao seu apartamento em lágrimas, mistas de susto e gratidão, de alegria e de receio. Como demonstrar à Repartição que fora assim; que fora o destino, e não ela, que se arrependera da maldade e a revertera?
Com o bendito pacote de dinheiro voltou Inês ao seu apartamento em lágrimas, mistas de susto e gratidão, de alegria e de receio. Como demonstrar à Repartição que fora assim; que fora o destino, e não ela, que se arrependera da maldade e a revertera?
Nesse
exato momento dois acadêmicos da Decúria Diretiva da ACLJ lhe tocam a
campainha, para convocá-la pessoalmente à Assembleia Geral Anual do silogeu que
ocorrerá esta semana – sem terem eles conhecimento prévio do seu drama – mas
notando incontinenti a expressão de angústia semialiviada da confreira.
Ato
contínuo, os dois foram então com ela à drogaria em que se dera o inocente
perdimento, e a devolução virtuosa, e munidos de um aparelho celular que
portavam gravaram em vídeo e áudio um depoimento franco do honesto
farmacêutico.
Inês
Mapurunga é convicta agora de que o espírito de seu velho genitor operou em seu
socorro, e que para fazê-lo mobilizou a confraria, da qual, in memoriam, também ele é integrante.
Duvidar disso se pode, mas os fatos não nos permitem desmenti-la. Se é assim, Amém!
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Alfredo Miranda vivia no frescor da serra, onde produzia licor de frutas diversas, oferecido aos visitantes de Viçosa em sua loja de sabores, que a família ainda mantém. Era um emérito contador de histórias, um memorialista, um poeta, um conversador delicioso.
Era
ainda fazedor e tocador de pífaros, essa mágica flauta transversa que
certamente remonta aos primórdios da memória antropológica.
Pífaro
é instrumento que vem de tempos imemoriais, apareceu em muitas culturas e em
todas as latitudes do Planeta, e com denominação vária em diversos dialetos, de
muitos idiomas.
Uma
fina canela de osso, um esguio gomo de bambu, um pequeno cilindro oco de
qualquer matéria rígida, com meia dúzia de furos por onde se controla com a
ponta dos dedos a saída do ar soprado pela boca no conduto interno, vai
produzindo sonoridade melódica maviosa.
Porém,
a manufatura desse objeto rústico, bem como retirar dele as melodias
pretendidas, são diferentes habilidades delicadas, a exigir apuro prático e
lavor artístico refinados. Até por sua simplicidade essencial, o pífaro é coisa
que requer muita ciência e muita lírica para ser feita com acerto e ser tocada
com beleza.
Esse
mago de saberes, um autêntico mestre da cultura cearense, que do acervo ibérico
que nos veio em caravelas e subiu a montanha, sincretizado com a experiência
hereditária dos indígenas, fez a sua própria arte.
E
ele produziu uma bela prole, à qual transmitiu sua vocação: a filha musicista,
ilustradora, poetisa, compositora de belas loas de maracatu; uma neta
latinista, instrumentista, formada em música e especializada em sonorização e
sonoplastia de cinema.
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