domingo, 19 de abril de 2015

CRÔNICA (RV)

AUTOMÓVEL É DOCUMENTO
Reginaldo Vasconcelos*


Carlos Drummond de Andrade produziu uma crônica certa vez, que foi publicada em jornal e livro, em que ele relata, com graça e bom humor, o dia em que resolveu sair de casa sem paletó e sem gravata, ou “em mangas de camisa”, como se dizia antigamente.

Era um tempo, por volta dos anos 50, em que pessoas de alguma projeção profissional e de melhor nível – bancários, professores, jornalistas, médicos, magistrados – estes somente se apresentavam em público usando “terno” – e devidamente engravatados.

Drummond diz que, quando era funcionário público, por qualquer razão foi ao centro da cidade vestido como gente comum, de “slack”, e então experimentou situações que lhe pareceram inusitadas, tratado pelo público com algum desprezo, ou com descabida intimidade.

Na fila de um Banco, por exemplo, o homenzinho da limpeza, lhe batendo impertinente com a vassoura nos pés, dirigiu-se a ele sem a mínima cerimônia: “Vamos afastar o pezinho, para o papai aqui poder trabalhar?!”.

Hoje, paletó e gravata não mais sinalizam status tanto assim, desde que vendedores itinerantes de livros, pregadores de igrejas de subúrbio e advogados porta-de-cadeia os tornaram habituais.

O carro que a pessoa ostenta, este é o moderno indicador de prosperidade e sucesso pessoal, primeiro “sinal exterior de riqueza”, quando novo, top de linha, ou de uma das marcas importadas. Se for um veículo mais velho, ou de categoria popular, pressupõe indigência financeira, decadência econômica, desimportância social.

Encontramos no trânsito um antigo colega de colégio dirigindo um bom automóvel e então já deduzimos que aquele terminou a faculdade, acertou no curso, fez um bom concurso, galgou um emprego público de ponta, ou se tornou empresário e o negócio prosperou. É um raciocínio inelutável.

Advogado trabalhista, fui um dia nomeado fiel depositário de um Fiat Uno da empresa reclamada, que o Juízo sequestrara e reservara para, ao final do processo, reverter em verba trabalhista devida ao empregado demitido. Então, por algum tempo, trafeguei com ele para que não estagnasse, pois veículo rodando moderadamente se desgasta menos que parado.

O carrinho era seminovo, “completo”, de bom espaço interno e ótima dirigibilidade, de suspensão tão firme que parecia “uma bolinha de borracha”. Motor econômico, mecânica robusta, manutenção barata, o Uno supriu a falta do velho Fusca, e foi por muitos anos escolhido pelas empresas para o trabalho dos seus vendedores, pelos sertões e pelas cidades.

Mas se trata de um modelo popular, o mais popular do mercado, hoje já fora de linha, recentemente substituído por uma versão aprimorada. E então, ao seu volante, percebi que não era tratado pelos demais componentes do tráfego da cidade de maneira tão respeitosa, como  quando dirigia outro veículo qualquer, um pouco mais prestigioso.

Buzinadas grosseiras, cortadas insolentes, pedestre na calçada me mandando apressar o passo, com um brusco e impaciente gesto de mão, para ele poder atravessar. Motociclistas batem nos retrovisores sem pedir desculpas, entregadores de panfletos nas esquinas me poupam da propaganda de apartamentos de alta classe.

Certa feita, trafegando por uma via secundária, ansioso para cruzar uma preferencial congestionada na hora do rush, avancei meio metro na ciclovia, para tentar aproveitar a brecha deixada no cruzamento, porque um sinal fechara adiante.

Então, um jovem ciclista que subia pela rua principal, parou diante do Uno, colocando os dois pés no chão, para me fazer uma repreensão autoritária, atitude que imagino ele não teria se eu dirigisse a minha Ranger no momento, ou fosse o Eike Batista em um de seus carros milionários. 

Na minha infância, os meninos mais valentes costumavam desafiar os maiores, porém menos afeitos a brigas de rua, instigando-os com aquela velha frase feita: “Tamanho não é documento!”.  

Pois a experiência toda com o carro de modelo popular deixou patente para mim que, na atualidade, “automóvel é documento”, porque ele promove a classificação socioeconômica do seu usuário, induzido a presumir-se a hierarquia social a que pertence.

O carro utilizado por uma pessoa indica se é alguém credor de especial reverência, ou se apenas merece o tratamento burlesco que o funcionário da faxina deu ao poeta Drummond, naquele Banco do passado.

Ao correr da pena me lembrei de que pelo menos uma vez essa realidade social teve um efeito virtuoso, em episódio que eu mesmo protagonizei, quando, alguns anos atrás, um ex-prefeito da cidade parou ao meu lado no sinal, dirigindo ele exatamente um Fiat Uno. Então ponderei intimamente que aquele respeitara o cargo e certamente não desviara verba pública.


*Reginaldo Vasconcelos
Advogado e Jornalista
Titular da Cadeira de nº 20 da ACLJ

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