domingo, 12 de abril de 2015

CRÔNICA (RV)

QUANTOS SOMOS DE FATO
Reginaldo Vasconcelos*


A Igreja induz devoção pelo Menino Jesus, como se entidade autônoma fosse. Estranho, porque Jesus Nazareno se fez homem, sendo também na condição de homem adulto cultuado. Entende-se que as crianças beatíficas sejam dessa forma retratadas, porque, afinal, não terão chegado à maturidade, ou porque em específico episódio da infância a santidade os tocou, como no caso das crianças de Fátima. Mas, como santificar a mesma pessoa, de maneira estanque, em duas fases diferentes de sua vida?



Pior ainda: como entronizar a mesma pessoa várias vezes, fazendo-a assumir divindades distintas, separadas por diferentes momentos históricos em que opera ou se apresenta, como ocorre com Maria, e também com o monge Sidarta Gautama? Como as muitas Nossas Senhoras em que Maria se desmembra, o líder espiritual indiano também é representado com algum polimorfismo – às vezes o sisudo e esbelto príncipe que medita, de outras vezes o simpático Buda Ho Tai, gordo, sorridente, despojado. 



Os homens públicos que morrem jovens criam a distorção desse efeito iconográfico que faz D. Pedro I se nos afigurar mais moço que seu filho, D. Pedro II, já que aquele aparece sempre no vigor da idade, nas estátuas e pinturas, enquanto este último é preferivelmente registrado na velhice, atrás das longas barbas brancas. Diante disso, proponho a questão: Quantas pessoas nós somos de fato? O menino que fomos, o jovem que éramos, o adulto que somos, ou o macróbio que seremos, se o destino o permitir?


Sempre que conhecemos alguém tendemos a imprimir em nossa mente o seu aspecto atual como padrão, como se ele tivesse sido sempre assim – a sua idade definitiva, a sua compleição ideal, a sua condição social fixa, o seu patrimônio intelectual inalterável. Qual nada, aquele ser desde sempre vem mudado, e é constantemente mutante – ontem um garoto, uma vez bem mais magro, ou talvez um obeso, amanhã já mais velho, no passado mais pobre, ou, quem sabe mais rico. “Nós somos sendo”, como dizia Ortega y Gasset. Somos gerúndio.

Certamente, ao ver as fotos do namoro, da lua de mel, dos primeiros filhos infantes, o divorciado tem esse estranhamento, a se indagar se aquele jovem apaixonado de antes é a mesma pessoa livre que recomeça a vida agora, com outros sonhos e outros ideais. Indo mais fundo no exemplo, o ex-presidiário que se recompôs com a sociedade e, quem sabe, converteu-se para uma profissão religiosa, também não se deve reconhecer no infrator, no penitente, no preso, no segregado que um dia o espelho lhe mostrou.

Um dia desses visitei um local frequentado por mim na juventude. Fiquei a lembrar de tudo o que ali vivi, como quem estivesse no cinema. Amores, angústias, intrigas, bravatas juvenis – os trajes que eu usava, os hábitos que nutria, o perfume, o cachimbo, a ousadia indômita, as fátuas esperanças... Aquele seria eu de fato, ou seria um personagem?  Afinal, a metamorfose faz uma nova criatura, ou a lagarta, em sua grotesca condição terrestre, já é a mesma graciosa borboleta em que se transformará? Quantos será que somos de fato?

Cada pessoa é uma multidão.


 
*Reginaldo Vasconcelos
Advogado e Jornalista
Titular da Cadeira de nº 20 da ACLJ

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