QUANTOS SOMOS DE FATO
Reginaldo Vasconcelos*
A Igreja induz devoção pelo Menino Jesus, como se entidade autônoma fosse.
Estranho, porque Jesus Nazareno se fez homem, sendo também na condição de homem
adulto cultuado. Entende-se que as crianças beatíficas sejam dessa forma
retratadas, porque, afinal, não terão chegado à maturidade, ou porque em
específico episódio da infância a santidade os tocou, como no caso das crianças
de Fátima. Mas, como santificar a mesma pessoa, de maneira estanque, em duas
fases diferentes de sua vida?
Pior
ainda: como entronizar a mesma pessoa várias vezes, fazendo-a assumir divindades distintas,
separadas por diferentes momentos históricos em que opera ou se apresenta, como
ocorre com Maria, e também com o monge Sidarta Gautama? Como as muitas Nossas
Senhoras em que Maria se desmembra, o líder espiritual indiano também é
representado com algum polimorfismo – às vezes o sisudo e esbelto príncipe que
medita, de outras vezes o simpático Buda Ho
Tai, gordo, sorridente, despojado.
Os homens públicos que morrem jovens criam a distorção desse efeito
iconográfico que faz D. Pedro I se nos afigurar mais moço que seu filho, D.
Pedro II, já que aquele aparece sempre no vigor da idade, nas estátuas e
pinturas, enquanto este último é preferivelmente registrado na velhice, atrás
das longas barbas brancas. Diante disso, proponho a questão: Quantas pessoas
nós somos de fato? O menino que fomos, o jovem que éramos, o adulto que somos,
ou o macróbio que seremos, se o destino o permitir?
Certamente, ao ver as fotos do namoro, da lua de mel, dos primeiros filhos
infantes, o divorciado tem esse estranhamento, a se indagar se aquele jovem
apaixonado de antes é a mesma pessoa livre que recomeça a vida agora, com
outros sonhos e outros ideais. Indo mais fundo no exemplo, o ex-presidiário que
se recompôs com a sociedade e, quem sabe, converteu-se para uma profissão
religiosa, também não se deve reconhecer no infrator, no penitente, no preso,
no segregado que um dia o espelho lhe mostrou.
Um dia desses visitei um local frequentado por mim na juventude. Fiquei a
lembrar de tudo o que ali vivi, como quem estivesse no cinema. Amores,
angústias, intrigas, bravatas juvenis – os trajes que eu usava, os hábitos que
nutria, o perfume, o cachimbo, a ousadia indômita, as fátuas esperanças... Aquele
seria eu de fato, ou seria um personagem?
Afinal, a metamorfose faz uma nova criatura, ou a lagarta, em sua grotesca
condição terrestre, já é a mesma graciosa borboleta em que se transformará? Quantos
será que somos de fato?
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