sexta-feira, 1 de abril de 2016

CRÔNICA - Chico Sapateiro (AM)



CHICO SAPATEIRO
Assis Martins*


A saudade é uma espécie de imposto de renda do sentimento. Cobra-se no fim do amor. BERILO NEVES. (Médico, jornalista e escritor piauiense. YParnaíba, 1901; VRio de Janeiro, 1974)


Durante parte da minha mocidade, participei do movimento teatral amador em Fortaleza, até o final dos anos de 1970, como ponto,* em vários grupos dramáticos: Conjunto Teatral Cearense, de José Cabral, Teatro de Amadores de Fortaleza, Teatro dos Gráficos, entre os mais importantes.  Levava a sério essa função que, me conduziu a saber de quase todos os palcos de um ambiente falto de atividades diversionais, como era Fortaleza, antes do advento da TV Ceará, em 1960.

O ponto era figura obrigatória e os atores, inclusive os veteranos, já “passados na casca do alho”, conhecendo de há muito os dramalhões (diálogos longos e enfadonhos), complicavam-se em cena, se não vissem, abaixo da ribalta, aquele sujeito sussurrando as falas.

Em quase todos os bairros havia casa teatral funcionando regularmente: Teatro São José, na Praça Cristo Redentor; Ginásio Santa Maria, no Benfica (onde, atualmente, funciona o Teatro Universitário da UFC); Círculo Operário dos Navegantes, no Jacarecanga; Pio XII, no Coração de Jesus; Sociedade Cearense de Fotografia e Cinema, na Rua Guilherme Rocha; São Vicente, em Parangaba; Patronato de Antônio Bezerra e outros. Como se percebe, não figura nesta lista o nosso mais importante local das artes cênicas, o Theatro José de Alencar, pois nele se apresentavam as companhias maiores.

A propósito, foi no José de Alencar uma das poucas vezes em que deixei o subterrâneo do palco para fazer uma ponta num grande espetáculo: O MORRO DO OURO, de Eduardo Campos, espetáculo maravilhoso da Comédia Cearense. Grande lotação, gente escorrendo pela torrinha* e eu fiquei em cena mais de meia hora; pena que o meu papel era o da Burrinha do Bumba meu boi, com muitos figurantes. E lá fiquei, rodopiando no meio dos brincantes, com aquele cavalinho de pano cobrindo a minha cara e suspenso nos ombros por largas tiras de couro. Assim, foi para o brejo a pretensão de me tornar um Procópio Ferreira, um Paulo Autran... ou mesmo um Leonardo de Caprio ou, ainda, um Charlton Heston...

Cheguei a atuar em temporadas num circo que aqui aportava, ganhando pequenos cachês e alimentando grandes ilusões sobre a filha do dono do circo, admiradora do meu desempenho. Dessa longa vivência mambembe/circense, amealhei grande traquejo na vida e conheci muitos tipos curiosos, os quais espero enfeixá-los, com suas histórias engraçadas, em uma só publicação. 

Um deles era o Chico, engraxate e sapateiro, morador do hoje “fumacento” Beco dos Pintos, no bairro do Otávio Bonfim. Trabalhava no Abrigo Central, na Praça do Ferreira. O Abrigo Central, que deixou saudade, era um espaço democrático, onde se misturavam pessoas de todas as classes – políticos, músicos, torcedores de futebol, alfaiates, malandros etc. O comércio era intenso nos seus cafés, entre eles o Presidente, Wal-Can, Canelinha, Pedão da bananada (fanático torcedor do Ceará), Alaor Revistas e Jornais, Café Embaixador, Café do Presidente (o maior), e o Café Expresso.

Esse espaço foi inaugurado em 15 de novembro de 1949, pelo Prefeito Acrísio Moreira da Rocha e demolido em 1967, na administração José Walter Cavalcante, para uma reforma total na Praça, o que desagradou a muita gente. 

Foi ali que o Professor Moreira Campos levou o dicionarista Aurélio Buarque de Holanda para tomar um cafezinho. Eis que quando o autor de O Puxador de Terço pediu “dois cafezinhos”, o alegre atendente gritou: “duas louças!”. Foi o suficiente para o Aurélio anotar – “louça-café servido no Ceará, em xícara pequena”.

Lá, também, ocorreu de, num ano de seca, o funcionário do BNB, hoje aposentado e com um consultório de Psicanálise, Dr. Sidecleiton Jucá, tomava uma xícara, quando surgiu uma pessoa do povo e seu conterrâneo, o Ciro, a quem Sid disse – “Olá, Ciro, quer tomar um cafezinho?” O pacotiense, com a barriga lá dentro, respondeu, de imediato: “Acho que vou aceitar uma sopa!

Pois bem: o Chico era um bom papo, principalmente sobre medicina popular, e se soltava quando começava a explicar para os fregueses as benesses do seu famoso lambedor, feito com a mistura de hibisco, janaguba, casca de jatobá, cumaru, alvaísco, courama, cebola-branca, angico, ipecacuanha (o povinho chamava “papaconha”), alho roxo, cupim do cajueiro e cachaça alemã. Segundo ele, curava até praga de madrinha!

Um dos fregueses ofereceu-lhe um lugar de trocador na Empresa São Jorge, uma das mais importantes dos anos 1950, cujos ônibus faziam a parada final na Praça do Ferreira; esses eram veículos de carrocerias artesanais, montadas sobre chassis de caminhão e com motores da Dodge-Fargo. Seus trajetos principais eram a Praça do Ferreira, Castro e Silva – a única rua que começa na igreja e termina no cemitério – Praça São Sebastião, Dom Manuel, Rua Justiniano de Serpa e um circular, pela Rua Domingos Olímpio até a Praça José Bonifácio, onde hoje é um quartel da Polícia Militar.

Ele ficou feliz com a oportunidade, mas esbarrou na dificuldade de fazer contas e lidar com dinheiro. Permaneceu na sua (o que fazia muito bem!) de polir sapato polar, manusear a sovela, costurar couro e colocar virolas em calçados à Luis XV, então na moda, usados pela maioria das mulheres.

Sua rotina mudou quando um amigo encomendou alguns artigos para um grupo teatral. Era o TAF (Teatro de Amadores de Fortaleza) e os artigos seriam de grande utilidade em espetáculos, principalmente na Paixão de Cristo: sandálias de papelão barato para os apóstolos e figurantes, calçados para os soldados romanos e fitas de couro para todos os fins. Tudo de material barato.

Era dia de ensaio no pequeno palco do Círculo Operário dos Navegantes, perto da Escola de Aprendizes Marinheiros, quando foi entregar a encomenda e ficou maravilhado, pois jamais tinha visto os bastidores de um teatro e não sabia como era um ensaio. Passou a ir várias vezes à sede do grupo, até se entrosar de vez, chegando a ser uma espécie de coringa, ajudando em tudo, desde a montagem do cenário até a distribuição de panfletos.

E os sábados do Beco dos Pintos (sinuquinha apostada e rodadas de sueca e relancinho), aos poucos, foram perdendo um dos mais animados clientes.

Os amigos mais chegados, com muito despeito, comentavam:  Égua, macho, o Chico depois que começou a andar com essa turma do teatro, tá uma banca! Fez uns trabalhos fulerage e pensa que vai ser artista. O bicho é tão feio, vai ver que o único papel que vão dar a ele no Mártir do Gólgota é o de coveiro de Cristo...


*Ponto: Pessoa que ficava numa caixa, no proscênio, abaixo da ribalta, lendo para os atores as falas, com todas as inflexões. 


*Torrinha: Era assim chamada a galeria mais alta de um teatro, ou, como se dizia, a geral.


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