quarta-feira, 2 de setembro de 2015

CRÔNICA - Esqueci o Título (AM)

ESQUECI O TÍTULO
Assis Martins*
                                                                                       
[...] Pouco importa venha a velhice. Que é a velhice? Teus ombros suportam o mundo, e ele não pesa mais que a mão de uma criança. (Carlos Drummond de Andrade)      

Velhice, senilidade, decrepitude e outras palavras antipáticas são companhia nada prazerosa, apesar da certeza de que nos alcançarão à revelia da nossa vontade.

O chato é que não há um “grid de largada” para a corrida que encetarão durante a nossa marcha cronológica, e não marcam hora para as mudanças insidiosas que farão nos nossos hábitos e relações sociais.

A primeira dessas fases é a senescência (do latim senex = velho), cujas características se acentuam com o envelhecimento biológico: mudanças hormonais, fisiológicas e anatômicas, de modo lento e gradual; o corpo perde a capacidade de responder às infecções e à memória imunológica. Depois, começa a fase mais cruel, a senilidade, quando a debilidade intelectual e física é mais acentuada, em razão do declínio de todos os sistemas do corpo (respiratório, endócrino, genital etc.), às vezes acompanhado de desorganização mental.

Ilustração: Assis Martins
A linha tênue que serve de fronteira entre a mocidade e a velhice não é percebida, e assim, alguns podem alcançá-la mais cedo, outros não. A evolução bio-psicológica depende de muitos fatores, entre os principais o modo de vida, a classe social, o ambiente et reliqua. 

O progresso da Medicina e uma qualidade de vida melhor propiciaram um aumento na expectativa de vida dos brasileiros na ordem de 75 anos. Juntando-se a isso a queda da mortalidade infantil, podemos afirmar que os demógrafos que se preparem para desenhar a pirâmide social com a posição invertida.

Estes prolegômenos estão ficando muito enfadonhos e, para aliviar, é melhor colocar um tom bem humorado ao assunto, apesar da sua seriedade. O seguinte diálogo entre dois adultos, na fronteira entre a senescência e a senilidade, foi ouvido por um amigo numa parada de ônibus:

– Zé, faz um tempão que a gente não se encontra. Cê tá morando onde?

– No Conjunto Ceará.

– Onde, no Conjunto Ceará?

– Não, no Conjunto Ceará.

– Ah, pensei que fosse no Conjunto Ceará...

Não é humor negro (ou como se diz agora, politicamente incorreto) citar esses diálogos engraçados, muito comuns até em pessoas de meia-idade. A nossa mente, sobrecarregada de muitos pensamentos, às vezes nos surpreende com cortes súbitos na ordenação de coisas ou fatos que estamos narrando.

Comigo, e acho que com muitos, já aconteceu a seguinte conversa:

– Cara, o Paulo, que mora lá na rua... (pausa)  perguntou por você.

– O Paulo vendedor ou o da...

– Não, o Paulo, irmão daquela loura, a... (como é mesmo o nome dela?)

– Ah! Já sei, me encontrei com ela quando fui assistir àquele filme do... 

Levando em conta que esta curta conversa tem quatro reticências, e cada uma três pontinhos, e sabendo que milhões de diálogos semelhantes a este estão ocorrendo agora, dá medo ao pensar que faltarão pontinhos para futuras reticências. A solução seria, então, utilizar os pontinhos dos tremas deletados pela Reforma Ortográfica.




NOTA DO EDITOR:

A crônica de Assis Martins trata de maneira bem-humorada o drama da velhice, que não atinge as pessoas em geral, mas, ironicamente, apenas aquelas que têm a ventura de sobreviver à juventude.

Importante notar que a Natureza só tem interesse na sobrevivência dos seres com suficientes higidez e resistência para superar a sua infância (vencendo a seleção natural para transmitir os melhores genes), e relega ao descarte natural os indivíduos que superem sua fase produtiva.

A  civilização subverte essa regra quando preserva os jovens menos capazes e prolonga a sobrevida dos idosos. Entretanto, pela via caridosa. Na prática, todos os bens da vida que a sociedade produz e cultua priorizam atender o universo dos mais jovens. Os esportes, a moda, a poesia, a música, o erotismo, os novos modelos de automóveis, a moderna arquitetura, tudo isso visa os que ainda estão vivendo as primeiras estrofes do poema Contraste, de Pe. Antônio Thomaz.

CONTRASTE
Pe. Antônio Thomaz

Quando partimos no verdor dos anos
Da vida pela estrada florescente
As esperanças vão conosco à frente,
E vão ficando atrás os desenganos.

Rindo, cantando, céleres, ufanos,
Vamos marchando descuidosamente;
Eis que chega a velhice, de repente,
Desfazendo ilusões, matando enganos.

Então nós enxergamos claramente,
Como a existência é rápida e falaz,
E vemos que sucede exatamente,

O contrário dos tempos de rapaz:
Os desenganos vão conosco à frente,
E as esperanças vão ficando atrás.



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