segunda-feira, 7 de setembro de 2015

ARTIGO - Sobre a Bravura (HE)

SOBRE A BRAVURA 
E O MEDO
Humberto Ellery*

A eterna discussão entre o que é medo e o que é coragem fez-me lembrar da história da Batalha de Zama, quando, na segunda guerra Púnica (sec. III a.C.), se defrontaram os Exércitos de Roma e de Cartago nas franjas do grande deserto africano, às margens do Mar Mediterrâneo.

Comandando os cartagineses estava ninguém menos que Aníbal,  considerado pelos historiadores militares o mais brilhante estrategista de todos os generais guerreiros. No comando das legiões romanas estava o general Publius Cornelius Cipião, conhecido por “o Africano”.

Aníbal viveu desde os nove anos acompanhando o exército de Amilcar, seu pai, que lhe transmitiu não só seus conhecimentos bélicos como todo o seu ódio pelo nascente império romano, além da ferocidade e enorme talento guerreiro. Com a morte de Amilcar na primeira guerra púnica, Aníbal assumiu o comando aos 26 anos, onde hoje está a Espanha.

Decidido a destruir Roma, Aníbal partiu com seus homens da península Ibérica, atravessou os Pirineus, os Alpes e chegou à planície do Rio Pó, onde infligiu três derrotas maiúsculas aos orgulhosos romanos nas batalhas de Ticino, Trébia e Trasimeno. Alguns meses depois derrotou o maior contingente de soldados romanos jamais reunido anteriormente, numa batalha tão devastadora que passou a ser designada”batalha de aniquilamento”.

Foi a Batalha de Cannas, quando, com grande inferioridade numérica, matou mais de 70 mil adversários em 6 horas de luta, usando apenas espadas, flechas e lanças. A partir de então, ao lado de toda sua competência militar, Aníbal passou a contar com a mística de invencível, com o que ele contava para subjugar Roma. Alguns historiadores acreditam que ele nunca atacou Roma diretamente pois queria que esta se entregasse, covardemente, sem oferecer resistência. Não foi o que aconteceu.

Catão ergueu-se contra aquele inimigo atrevido e  passou a bradar no Senado “Delenda est Carthago” ao final de cada discurso, insuflando o ódio entre os romanos, pois julgava que só com a destruição de Cartago o Império Romano teria paz.

A “Pax Romana”. Com esse fito Cipião foi enviado à África para combater os cartagineses em seu próprio território. Durante a noite que antecedeu a batalha Cipião alinhou seus soldados em frente ao terreno onde ele julgava estar o  Exército de Aníbal. Aos primeiros raios do sol, Cipião teve um impacto terrível.

De um lado ao outro do horizonte os cartagineses já estavam em posição de combate. Até onde a vista alcançava podia-se ver, tremulando à brisa da madrugada, os estandartes do formidável exército de Aníbal. Sobranceiras, dominavam a paisagem as flâmulas de suas divisões de infantaria, cavalaria, arqueiros, lanceiros e, a mais ameaçadora de todas, a tropa de Elefantes de Guerra.

Dezenas de elefantes, gigantes de até oito toneladas, cinco metros de altura, treinados para matar, conduzidos por hábeis ginetes que os transformavam em poderosas armas de guerra. Montado em seu cavalo Cipião estava pálido, congelado de pavor.

Rompendo o silêncio, a um sinal de Aníbal, os elefantes ergueram suas trombas agressivamente e, num bramido ensurdecedor, partiram para cima das tropas de Cipião. Eram como milhares de trombetas anunciando o Armagedom. Seu tropel fazia o chão tremer sob um ribombar surdo e cadenciado. Cipião começou a tremer convulsivamente. Tremia de medo, completamente sem controle sobre seu próprio corpo.

Seus generais se entreolhavam, mudos, apavorados. De repente Cipião, sem  pear do cavalo ergueu-se sobre os estribos,  e, em pé, braços abertos e espada empunhada, olhando para si próprio gritou, magnífico: “TREME CARCAÇA! TREME! TREMERIAS MAIS AINDA SE SOUBESSES AONDE PRETENDO TE LEVAR”.

Ato contínuo esporeou seu cavalo e partiu como um alucinado em direção ao que parecia ser uma morte certa. Destacando cada sílaba deu seu brado de guerra: A-TA-CAAAAAR! Seus soldados esponderam em uníssono: A-TA-CAAAAR!

Era o início da mais sangrenta batalha da história: a Batalha de Zama!  Cipião esgueirou-se entre os elefantes e foi a procura de Aníbal. Queria matá-lo! Seus lanceiros, devidamente treinados, se imiscuiam entre os elefantes e cravavam suas lanças entre suas patas dianteiras, logo abaixo do pescoço, atingindo-lhes o coração. Os pobres gigantes tombavam entre golfadas de sangue, algumas vezes esmagando seus matadores com seus corpos. Terrível.

Seus arqueiros, com um joelho no chão, desferiam setas certeiras que cruzavam o céu levando a morte e a confusão às tropas da retaguarda. Sua cavalaria destroçou a cavalaria de Aníbal. Cavaleiros romanos pareciam tomados pelo espírito indômito de Cipião.

Cipião, já desmontado, lutava bravamente com sua espada numa busca louca por Aníbal. A batalha, sem descanso, durou o dia inteiro. Cipião, de tempos em tempos, trocava a espada de mãos para continuar lutando.


Ao por do sol fez-se finalmente um silêncio pesado. Cipião vagava entre os destroços e cadáveres. Desgrenhado, ensanguentado, Cipião ofegava ruidosamente, como um lamento rouco, como urros de uma fera. Olhando em volta percebeu finalmente a verdade que relutava em acreditar: Aníbal fugira! Transtornado de ódio ajoelhou-se sobre o solo africano e, com ambas as mãos, cravou-lhe sua espada. Parecia querer atingir o coração de Cartago, o coração da própria África, e gritou: DELENDA EST CARTHAGO! Em seguida, lentamente, deitou-se sobre o solo e fitou o céu.

O por do sol africano, tingindo todo o céu de vermelho, parecia refletir o solo arenoso empapado de sangue. Cipião observou então que, naquela hora, erguido e altaneiro apenas um estandarte tremulava embalado pela brisa quente do deserto, roto pela batalha, ensanguentado, mas glorioso. O estandarte de Cipião, o Africano. Seu rosto iluminou-se num sorriso. Seu corpo não tremia mais.


José Humberto Garcia Ellery
Engenheiro Químico
Ex-Oficial da Marinha Brasileira
Membro Honorário da ACLJ

  
NOTA DO EDITOR:

Oportuno e muito ilustrativo o artigo de Humberto Ellery sobre  a bravura e o medo, nestes dias em que o Brasil assistiu estupefato pela televisão à cena em que um idoso morador de rua ataca bravamente um bandido armado que subjuga uma mulher, na escadaria da Igreja da Sé, em São Paulo, enfrentando a morte em defesa de uma cidadã desconhecida.

Enquanto isso, policiais que acompanhavam inertes o desenrolar dos fatos no local  e bem de perto  não tiveram a iniciativa de conter o agressor injusto, não obstante o seu dever de proteger a sociedade, tampouco tiveram ação para evitar a morte do cidadão que o enfrentou de peito aberto. A polícia somente matou o facínora quando este já consumara a sua obra criminosa e descarregara a sua arma.  

Em qualquer país sério um atirador de elite da polícia teria abatido o agressor daquela mulher, agindo em legítima defesa de terceiro, pois a qualquer momento ele poderia cumprir a ameaça de matá-la – ou pelo menos o teria alvejado antes que ele fizesse sua vítima fatal, matando o herói popular que libertara a sua presa.

Lamentavelmente, no Brasil as polícias vivem acovardadas diante de uma imprensa contaminada por distorcido conceito de direitos humanos "politicamente correto", segundo o qual as pretensas prerrogativas humanitárias dos delinquentes superam em importância as legítimas atribuições legais dos que defendem a sociedade, com risco da própria vida, por um mísero salário.

A legislação penal também não concede qualquer vantagem aos que têm missão oficial de segurança pública. Em Fortaleza, há alguns anos, um policial revidou contra um homem que adentrou uma loja atirando, perseguindo um desafeto desarmado, e na troca de tiros um funcionário da empresa foi atingido fatalmente.

O grande foco do inquérito não era apurar a culpa de quem provocara o conflito injustamente, mas o exame balístico para definir de qual arma saíra o projétil que matara acidentalmente o vendedor, para somente sobre esse específico atirador pesar a acusação de homicídio, ainda que fosse ele o bem-intencionado agente público. Absurdo! Claro que, independentemente do laudo balístico, nesse episódio havia um assassino definido. 
     

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