sábado, 18 de outubro de 2014

CRÔNICA (RV)

HISTÓRIA DE ELVIRA
Reginaldo Vasconcelos*

Recife, anos 60. Um grupo de jornalistas de todo o país entrevistava Vicente Celestinocantor sexagenário de grande fama em sua época, com multidões de fãs Brasil  afora.

Um dos repórteres pediu-lhe que citasse alguns dos gestos mais extremados de suas admiradoras.

 – Tive uma fã que me comia os retratos com cerveja – lembrou o cantor, com seu vozeirão grave. O grupo não conteve o riso, mal disfarçando algum ceticismo, quando Guilherme Neto aparteou:

– Conheci essa moça. Chamava-se Elvira.

Os olhos do velho artista  rutilaram, distinguindo Guilherme entre os demais.

– Então você é cearense! Era uma mulher monumental, de pele alvíssima, olhos azuis, cabelos de bronze polido.

Guilherme Neto conhecera Elvira sim, mas não só isso. Vivera bem de perto sua paixão pelo mito, que quase se transformara em uma tragédia.

Fortaleza, anos 40. Cumprindo sua turnê pelo  país, Vicente Celestino trouxe o seu show ao José de Alencar. Guilherme Neto, então jovem boêmio de boa voz, abriu o espetáculo com alguns números musicais, fazendo esteira para o grande astro, que criava assim algum suspense antes de adentrar o palco.

Um homem de aspecto respeitável, acompanhado de esposa muito bela e muito jovem, procurou Celestino na coxia do teatro. Convidaram-no com insistência para um jantar no restaurante do Excelsior Hotel, local mais requintado e discreto de que dispunha a cidade. Jantaram. Celestino encantado com a beleza da mulher, com a fineza do casal.

Então abriram o jogo: não eram casados. Ele enviuvara, não pretendia mais casar. Encontrara-a nos bataclãs da vida; cumulava-a de mimos; ela mandava em seu coração. Mas no coração dela Celestino reinava.

Elvira contou então ao cantor que suas irmãs de profissão, as demais moradoras da pensão de Madame Olímpia, tinham enorme desejo de  conhecê-lo. Não podiam  ir ao teatro, pois naquele tempo elas eram imiscíveis com as demais mulheres da sociedade. Aliás, não podiam sequer sair à rua durante a noite, por imposição de posturas municipais vigentes.

O artista comoveu-se.

– Pois amanhã à noite, depois do show, vou  visitá-las.

O cabaré preparou-se para viver o seu dia de glória. O protetor de Elvira e a dona da casa, Madame Olímpia, uniram forças para que houvesse esmero em cada detalhe. Toalhas novas nas mesas, cortinados nos desvãos, garçons muito engomados, polidos os metais da orquestra, rosas por toda parte, que, aliás, o tom de róseo prevalecia, e de róseo foi decorado o quarto de Elvira.

Tapete vermelho escada acima, deveria a orquestra atacar com a música “Porta Aberta”, grande sucesso de Celestino, logo de sua entrada no recinto, quando seria posta em cada mesa uma garrafa de champanhe francês.

O moleque Tangerina esperava na calçada para dar o alarme. Já estavam presentes os clientes mais constantes, dentre eles Guilherme Neto, bem como os mais refinados, previamente convidados, quando Tangerina avisou que o homem chegara.

Tudo funcionou como esperado. Vicente Celestino sentou-se à mesa com Elvira e seu protetor, até que este, horas avançadas, despediu-se de todos e retirou-se. Momento seguinte, de forma romântica e apoteótica, a dona da festa conduziu o seu homenageado para a alcova. Fechou-se a porta.

Fechou-se de súbito o coração de Guilherme Neto, que a tudo assistia entre bolhas de champanhe. Mordeu-lhe ciúme inesperado da puta bonita que tantas vezes namorara, despertando assim a revolta do potro vadio, contra o garanhão bem arreado.

Desceu tristemente a escada da pensão e deixou que a brisa do mar empurrasse seu corpo meio ébrio, fazendo-o descer a Ladeira dos Leões em direção ao La Conga, restaurante boêmio da época. Ali bebericou sua mágoa secreta entre amigos, até que o primeiro raio da manhã, refletido no seu copo, apontasse o caminho de volta. Certo como o nascer do sol era voltar ao local onde o orgulho masculino nutara sobre o insuspeitado abismo afetivo. 

Encontrou o quarto de Elvira entreaberto. Ela chorava recostada sobre a cama, tomava cerveja, bebia o repertório de Celestino, que rodava incessantemente em sua vitrola, móvel imenso em cima do qual  repousava, em cera, toda a obra do cantor.

Guilherme Neto foi entrando na penumbra do quarto e sentou-se na cadeira que havia junto ao leito. O que nele era mágoa evolou-se de repente, já que melíflua compaixão lhe assomou ao espírito.

– O que houve, minha amiga? Pensei que estivesse feliz. 

A resposta tardaria, porque tudo era pranto. Insones, em dilúvio, os olhos da moça fitavam um ponto imaginário. O corpo nu, velado pelo penhoar cor-de-rosa.

– Ele despiu o paletó e a camisa e ficou sentado ai mesmo onde você está, por toda a noite, até que o automóvel chegasse para  levá-lo ao aeroporto. Disse que não queira aumentar a nossa intimidade, para não aprofundar a minha paixão e me fazer sofrer ainda mais com a sua ausência.

Dizendo isso, apanhou um retrato promocional em que Celestino posava, com o olhar distante e um cigarro na mão, passando a  picotá-lo e ingerir os nacos como hóstias da comunhão, a cada gole de cerveja.

Dias depois, convencida de que a ingestão simbólica do homem não bastasse ao seu amor, Elvira tentou o suicídio tomando veneno. Foi Guilherme Neto quem a socorreu, levando-a à emergência  hospitalar, onde lhe salvaram a vida. 


*Reginaldo Vasconcelos
Advogado e Jornalista
Titular da Cadeira de nº 20 da ACLJ

Nenhum comentário:

Postar um comentário