TEOCRACIA CAMUFLADA
Rui Martinho Rodrigues*
O Estado laico foi criado para evitar
conflitos religiosos. Seria neutro. Obrigaria a prática da tolerância, da
coexistência pacífica. Asseguraria a liberdade de consciência, desde que esta não
atingisse a alteridade.
Juízos de valor seriam deixados ao
alvedrio dos sujeitos capazes. Nascia a liberdade negocial. A lei só proibiria
ou obrigaria aquilo que não ferisse a consciência livre dos cidadãos, que foram
desobrigados do serviço militar por motivos de consciência.
A paz social e o reconhecimento do não
saber, no campo valorativo, nivelando o doutos ao apedeuta inspiraram o
laicismo. Resolve-se pelo voto aquilo que não se sabe nem pode saber ao certo,
por não se tratar de juízo de realidade, indiferenciando os cidadãos. Um homem, um voto.
A Revolução Francesa,
incompreensivelmente havida como liberal, inverteu a lógica da Revolução de
Guilherme de Orange, que, seguindo o liberalismo inglês, estabeleceu o controle do governo pelos cidadãos. Os Franceses criaram, com a sua revolução
sanguinária, a lógica de um governo forte para “corrigir os erros da sociedade”,
pretextando remover resíduos do feudalismo.
Não se tratava de implantar um governo
consentido pelos cidadãos, mas que se presumia “esclarecido”, significando isso
uma superioridade intelectual e moral, capaz de tratar juízos de valor como se
fossem juízos de realidade, valores como problemas científicos.
Reinstalava-se
uma crença religiosa em opções valorativas, manifesta no esforço de
revolucionar a cultura, mudando a cabeça do povo. Realizaram campanhas de “esclarecimento”
para implantar uma “consciência” supostamente verdadeira. O cidadão é
considerado incapaz e o Estado seu curador. É o totalitarismo.
Presunção de superioridade moral
promoveu intolerância, arrogância, pseudo-virtude desmascarada no mar de sangue
de seiscentas mil cabeças degoladas na guilhotina. Era um Estado confessional,
dirigido por uma religião civil “politicamente correta”, camuflada sob a pele
do laicismo.
Estamos revivendo o dogmatismo e a
“fúria santa” das religiões políticas. O Estado confessional destas religiões
faz provas de concursos públicos, como o ENEM, exigindo respostas em
conformidade com valores de uma consciência oficial; move perseguições em nome da
tolerância, constrange pessoas ao silêncio e à submissão aos valores dos “novos
gestores da moral”.
Conceitos dos valores de grandes
parcelas da população foram renomeados como “preconceito”, embora sejam
conceitos formulados por quem conhece o fato valorado. Na ausência de escrúpulos,
a ética finalista alega um determinismo genético grosseiramente reducionista,
quando se trate de orientação sexual, embora argumente com o mais extremado
reducionismo culturalista quando se trate de dimorfismo de sexo/gênero.
A imposição de valores viola a
liberdade, adota uma consciência oficial, abolindo o Estado laico, sacralizando
valores alternativos, semelhando a axiologia nietzchseana, é grave ameaça à paz
social e à liberdade. É a herança do dogmatismo jesuítico, continuado nas tradições
pseudo-laicas. Invoca um relativismo de conveniência, sem deixar de ser dogmática.
Decreta a incapacidade dos cidadãos (falsa consciência) e arroga ao papel de
curador. É o totaliarismo.
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