HOMO INSIPIENS*
Reginaldo Vasconcelos*
Pessoalmente, não sou a favor de que se faça arte ficcional sobre os
ícones místicos, de quaisquer religiões. Independentemente do gênero ou
suporte, tema ou enredo, biográfico ou humorístico, entendo que os santos e as
entidades espirituais em geral são propriedade dos fiéis que os adoram e os cultuam.
A memória dos antepassados de qualquer um está protegida por lei, pelo menos
no Brasil, no caso de calúnia ou de dano moral reflexo aos descendentes; assim também
para as hipóteses de profanação e vilipêndio, como violação de templos, ataque a cultos e
desrespeito a gente morta, também há
previsão penal, de modo que a iconoclastia verbal e gráfica contra o sentimento religioso e contra figuras beatíficas, envolvendo ultraje e escárnio, não seria ato lícito.
Então, notícias sobre os credos e os crentes, bem como documentários históricos
sobre a vida dos seus personagens votivos, estão no âmbito da liberdade de
expressão. Porém, criar narrativas moralmente desabonadoras, ou fazer graça
picaresca com os objetos de culto alheio, a meu sentir, excede esses limites –
e eu digo isso desde a polêmica sobre o filme Je
Vous Salue, Marie, do cineasta Jean-Luc Godard, lançado em 1985.
Assim, se artistas, políticos e homens públicos em geral não podem
reclamar ataques à sua honra quando deles se fazem especulações jornalísticas, paródias
cômicas, e se lhes desenham charges e caricaturas, entretanto os grandes
avatares de religiões e seitas, pertencentes à indefesa casta espiritual dos
santos e dos mortos venerados, deveriam ser poupados da livre verve dos opífices e escribas.
De fato, a liberdade de expressão do artista tem limite na suscetibilidade moral
dos indivíduos graves e dos grupos rituais. Essa foi inclusive a opinião corajosa vertida pelo cartunista
brasileiro Laerte, ouvido sobre o caso Charlie Hebdo, o qual, embora vestido de
mulher, se posicionou ontem com hombridade excepcional – sem deixar de lamentar
as irreparáveis perdas humanas que o episódio ocasionou.
É obvio que nada no mundo justifica agressões físicas, atentados covardes,
chacinas, assassinatos, quando as razões originais se degradam inteiramente
diante da reação desproporcional dos ofendidos, quando meios sangrentos e
desumanos são adotados por alguém, em nome da própria moral e da religiosidade
de seu grupo.
Bastaria aos fundamentalistas muçulmanos protestar publicamente contra as
tiras bem-humoradas sobre o Profeta Maomé, recorrer à Justiça, fazer campanhas
para sabotar a circulação da revista ou jornal entre os que se considerassem atingidos. Nada,
além disso, lhes seria lícito fazer. O mais, juridicamente, é “exercício arbitrários
das próprias razões”, ou, popularmente, o vezo de querer fazer justiça com as usas
próprias mãos.
Todo o episódio é profundamente lamentável, até porque pode encorajar
outras ações semelhantes contra outros jornalistas, o que, de fato, de
forma difusa, por intimidação, tende a limitar em futuro a liberdade de
expressão. Ademais, grandes talentos do cartum, que inspiram desenhistas do
mundo todo, tiveram a vida abreviada, o que representa um imenso prejuízo a
essa linguagem jornalística do desenho e do humorismo.
Urge pois que medidas imediatas e muito severas sejam adotadas pelo concerto das
nações, não só para punir, mas para coibir o terrorismo, de modo a evitar novos
atentados, o que certamente vai acirrar o racismo e a xenofobia contra os povos islamistas, grande foco dessas ações desassisadas. Já se observam restrições contra eles no mundo todo, desde
o ataque às Torres Gêmeas, efeito que agora ainda mais se agravará. É lamentável, mas imperioso. Enfim, tudo o que
se poderia desejar e pedir a Deus – Jeová, Adonai, Alá, Javé, Tupã – é uma dotação extra de sabedoria
aos que nos classificamos homo sapiens.
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