REMINISCÊNCIAS E UM LUGAR PARA O SONETO NECRÓPOLE
Vianney Mesquita*
Qual o esconderijo onde a morte não consegue entrar? (SÊNECA) (1)
Exceto engodo de
memória, corria 1961 e eu, na antiga Escola Industrial de Fortaleza, hoje IFCE,
cursava a disciplina Língua Portuguesa, cuja regente era a mui estimada e
competentíssima professora Adelba Montenegro de Carvalho, pessoa culta e da
distinta sociedade daquela ainda tão provinciana Fortaleza.
Por esse tempo, na
ambiência de uma biblioteca com acervo (2) de primeira qualidade mantida pela
Escola, avezara-me a leituras que se afastassem do ramerrame das produções mais
simples, de mero alcance popular, com vistas a granjear lista maior de
palavras, expressões e edificações frasais, a fim (quem sabe, ingenuamente) de
me achegar aos clássicos, mormente em razão das saudáveis disputas entre os
seis ou sete mais destacados escolares da classe, comigo incluso, que
primávamos pela proximidade da perfeição quando do descometimento das tarefas a
nós destinadas.
Posso contabilizar,
entre eles, Cícero de Jesus Durval e Silva, Antônio Edson do Nascimento, José
Adail dos Santos (falecido) Francisco Santos de Oliveira, José Linhares do
Nascimento (falecido) e Francisco Meneses de Mendonça, dos quais (os vivos) de
há muito não tenho qualquer notícia.
Renderam-me, a mim e
aos demais litigantes – no melhor senso que esta palavra pode alcançar – excepcionais
dividendos, resultantes desses investimentos culturais francos e não calculados,
rosa-dos-ventos da nossa trilha em demanda do saber, ótimo de se guardar e
empregar, porém, de trabalhosa obtenção. Expressem-no aqueles favorecidos pelo
hábito diuturno de estudar.
Tanto em relação à
língua-prosa quanto metrificada, diligenciava no tentame de compor textos mais
ricos, com vocabulário diversificado e ideias bem meditadas, com o fito de
oferecer a quem lesse a oportunidade de deparar algo diverso do estilo trivial
e elocução terra-a-terra, conforme lecionava a Professora Adelba e consoante
comentei recentemente com a escritora palmaciana Iolanda Campelo Andrade a
respeito de suas produções literárias.
A Mestra, no entanto,
desaprovava, incontinenti, nossas amplificações expressionais e transportes
verbais que beiravam a gramatiquice, muitas vezes descambando para o
preciosismo, pois composições de decodificação difícil até por parte de
leitores mais aprestados intelectualmente.
Em razão, todavia, das
limitações informacionais peculiares ao nosso intervalo etário – por exemplo,
eu contava apenas catorze anos – com certa raridade, mesmo assim passando pelos
cortes procedidos pela Professora, lográvamos um escrito regular, apreciável,
limpo de defeitos gramaticais e falhas de estilo, na verdade, diferentes
daquelas expressões compositivas que fazem situar seus autores na conhecida
vala comum.
BENTO TEIXEIRA PINTO
Difícil era, senão
impossível, atentar para as prescrições professorais no concernente ao
interdito da imitação, do chamado pasticho, a reprodução servil do estilo de
outrem, como, por exemplo, há-de o cultor da história de nossas letras assentir
nas trasladações literárias procedidas pelo portuense Bento Teixeira Pinto (Porto,
1561-Lisboa, 1618) com sua mal-ajambrada Prosopopeia
(1601), conquanto tenha sido, cronologicamente, o primeiro poeta “brasileiro”,
lusitano radicado no Brasil, ao se excetuar São José de Anchieta, que também
não era nosso nacional, mas canarino-espanhol (São Cristóvão da Lagoa - Tenerife
– Canárias, 19.3.1554; Reritiba, hoje Anchieta-ES, 9.6.1597).
Desculpem as digressões,
mas é adequado informar o fato de que alguns historiógrafos literários
nacionais, como, entre outros, José Veríssimo, Ronald de Carvalho, José
Guilherme Merchior e Afrânio Coutinho tacham Bento Teixeira Pinto de imitador
de Ovídio, nas Metamorfoses, e
Camões, n’Os Lusíadas, além de esse
poema pretensamente épico fazer acentuadas referências apologéticas a Jorge
Coelho de Albuquerque, Governador de Pernambuco, ao tempo de sua produção
(MESQUITA, Vianney. Fermento na Massa do
Texto. Sobral: Edições UVA, 2001).
No que concerne aos
raros textos em língua-prosa da época mencionada, de estágios (3) literários
por mim experimentados, nenhum restou preservado, embora uns poucos hajam sido
publicados em folhas de periodicidade irregular circulante da EIF, locus dessas memórias, como Vencer e O Concludente, cujos arquivos, certamente, não mais existem
(preciso até verificar isso na Biblioteca), porquanto estava ainda bastante
longe da Era Digital, tampouco se conservava o hábito saudável de reter
originais manuscritos.
Foi, portanto, da
Avenida Treze de Maio, 2081, ainda sem qualquer arborização nas alamedas, pavimentada
com pedras toscas e onde ainda descansa por demais modificado o edifício do
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia - IFCE, que saiu a peça à
frente, mantida decorada e de salto (4), onde é notório o teor imitativo – de
Araújo Porto Alegre, Camões, e Augusto dos Anjos, principalmente – com mero
preenchimento do estalão provençal sonet,
razão por que lhe não pretendo conferir qualquer axiologia literária, pois
eivada de defeitos, daqueles particulares a quem é visitante de qualquer tema.
De outra parte,
convenhamos, ao se preterir a noção de o escrito não ser da colheita de
produtor maduro, passado na casca
do alho da Literatura, o soneto Morbidez,
composto em outubro de 1961 (?), não é
tão ruim assim! - como em 17.02.2014
me escreveu Sânzio de Azevedo por via de correio eletrônico. Ao solicitar a
opinião do celebrado Mestre, de quem sou admirador número um, ele indigitou na
composição vários defeitos, como, v.g.,
os quartetos não rimados, a esquisita concordância de sonhos com neurônios (malgrado
os portugueses consoem levando em conta a fonética, ocorrente assim com mãe e também) e um suarabácti (5), registado em raquidiano, o que
voltarei a comentar.
Reproduzo, pois o Morbidez.
Tomam-me por inteiro as mialgias/ Na
arteriosclerose das matérias./E o bater pressuroso das artérias/ Pareço escutar
todos os dias.
Seguir calado, acalentando sonhos/
Já não resisto de tal modo insano/ Extravasa-se o fluido raquidiano/ S’esvaem a
cada dia meus neurônios.
É a cefaleia ultradolorosa!/ Que
agride, me açoita e me anquilosa.../Como se me fendesse um parietal.
O bisturi meu cérebro não cinde/
Porque o doutor da epífise imprescinde.../Pois que findou: partiu-se a pineal.
Vianney Mesquita
O celebrado e eclético
escritor de A Terra antes do Homem
divisou, de súbito, a parecença com o estilo do Vate paraibano da Vila do
Espírito Santo, hajam vistas o vocabulário presunçosamente cientificista
praticado no Morbidez, em pretensa
comparação ao modo de tornear do artista de Vandalismo.
O Professor Doutor
Rafael Sânzio de Azevedo, porém, me fez suspirar aliviado, quando referiu não
recorrer, quando concerta seus metros, ao expediente do suarabácti, mas
exprimiu para mim a ideia de que o não tem por erro, pois aproveitado por
poetas de renomeada, a começar pelo maior de todos no Brasil [na sua opinião e
na minha, coincidentes com igual pensamento de Olavo Bilac e Mário Raul de
Morais Andrade (6)] Gonçalves Dias.
Contudo os olhos de ignóbil ponto:/Um tapuia, um guerreiro adventício.
E outros grandes
poetas:
Entre blasfêmias e obscenos cantos. (Luís Nicolau Fagundes Varela). Há ritmo e cadência no teu passo. (Antônio Frederico de Castro Alves).
E um moderno, Mário de
Miranda Quintana:
Andam por tudo signos diversos.
NECRÓPOLE
O outro soneto, o
anunciado no título deste artigo, é desconhecido de Sânzio de Azevedo, e também
foi devidamente guardado na retentiva, de cor e salteado, e é, seguramente, de
1961, composto no sistema ABBC, ABBC, AAB e AAB, para mim, bem melhor, sem ser
perfeito – é claro – do que Morbidez.
Aqui, sem o saber,
naturalmente, parece que acertei, no escuro, porque nada sabia de versificação,
elaborando as estâncias apenas à demanda de preencher os gradeados aos modos de
Camões (Episódio de Inês de Castro),
José Basílio da Gama(n’O Uraguai),
Araújo Porto Alegre (Colombo), Padre
Antônio Tomás (Contraste) e de um que
meu conterrâneo José Fernandes Sampaio, durante larguíssimos anos, me fez
pensar fosse de sua lavra, e só bem mais tarde descobri ser de outro patrício,
meu patrono na cadeira número 27 da Academia Cearense de Literatura e
Jornalismo, Professor José Rebouças Macambira (Palmácia, 17 de novembro de 1917
– Fortaleza, 17 de janeiro de 1992), celebrado linguista e douto poliglota.
Cuido de Lábios Virginais, inserto no
livro Musas de Aquém e de Além, publicado
em 1981. Segue-se mencionada peça.
Ao rouco e surdo canto do cipreste,/ A turma inerte
se não mais levanta./ E triste e morta em silêncio canta/ A morbidez terrível
dum gemido.
À tez marmórea que a cidade veste, /Além o crocitar
doutros cantores/Contrasta dalegria dos atores/ Do vivo libertino e destemido.
Num cemitério, nada assoma ou medra/Tudo é a
indiferença duma pedra/ A muda língua a for dos absortos.
E todos vós que houverdes seus amores/ E para vós
são como mis horrores,/ Vinde, também, para o festim dos mortos.
(Vianney Mesquita)
Neste poema de dez ictos – acentos que recaem sobre a sílaba de um pé - é
possível o leitor lobrigar o uso de expedientes figurais, como síndeto, elisão,
hipérbole, metáfora, bem assim colocações clíticas pouco comuns na prosa e
ordinárias na poesia, como na apossínclise em “a turba inerte se não mais levanta”, e.g. (segundo verso), inversões dos
locais ordinários dos termos e outros meios de conferir obediência ao metro e
conceder mais esthese à composição;
e, toca dizer, o mais relevante, sem eu conhecer, no tempo de produzido, as
prescrições expressas pelos manuais, como um a que tive acesso, todavia sem
sequer conseguir lê-lo, o Tratado de
Versificação (1905), da autoria de Sebastião Cícero dos Guimarães Passos
(1867-1909) e Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac (1865-1918), pois não
possuía as informações solicitadas para alcançar seu entendimento. De tal modo,
o haver logrado terminar a composição decorreu da comparação com os clássicos dos
primeiros momentos da Arte da Literatura nacional, como os precitados
escritores.
VERSÃO
PROSADA DO SONETO
A feitura deste
decassilábico teve por locus o campo
santo municipal da Sede municipal de Palmácia-CE, entre a Vila Campos e o
Pinga, onde há um cipreste comum – Cupressus
sempervirens – variedade de árvore conífera de folhas bastante delgadas,
da família das Cupressaceae, bem
receptiva ao sopro dos ventos. Veja, pois, o leitor o cotejamento.
Primeiro Quarteto
Ao passo, portanto,
que a brisa sacode os ramalhos do cipreste do cemitério, produz um silvo meio
rouco do roçar dos esgalhos, entrecortado de assovios. Evidentemente, os que
estão aí sepultos não mais podem se alevantar. Então, calados, tristes – porque
mortos – silentes permanecem, sob a languidez do sibilo provocado pela brisa na
árvore.
Segundo Quarteto
Ao aspecto cinzento e
triste (tez marmórea) que encobre a
morada dos mortos se ajuntam os corta-mortalhas (Tito alba), voejando com seus grasnados soturnos e assustadores, e
os urubus (Coragyps atratus),
sentindo o rasto da matéria decomposta, em flagrante oposição à alegria da vida
experimentada lá fora, nutrida com destemor e muitas vezes descomedimento.
Primeiro Trístico
Numa cidade onde os
moradores ficam imutavelmente na
horizontal, na expressão de Billy Blanco em A Banca do Distinto, absolutamente nada se mostra, nenhuma coisa
progride, pois reina a apatia de seres inanimados, a quietude é que dá o
sem-tom de quem já foi arrebatado para a dimensão etérea, quer para o tormento
eterno, a necessária purgação ou mesmo para a Glorificação Celestial, ou seja, a muda língua a for (7) dos absortos.
Segundo Trístico
Então, o autor convida
a todos aqueles que têm amores (houverdes
está no verso aplicado no sentido de possuirdes),
os quais para essas pessoas são como horrores, a virem, também, morar no cemitério,
como a assentir na ideia do poeta neoclassicista lusitano, Manuel Maria de
Barbosa l’Hedois du Bocage (*Setúbal, 15.09.1765; Lisboa, 21-12-1805), para
quem Ah, não me roubou tudo a negra
Sorte!/Inda tenho este abrigo, inda me resta/O pranto, a queixa, a solidão e a Morte.
Pois é, estimado
leitor, o fato de eu não haver guardado alfarrábios, anotações garatujadas, e
de não as ter memorizado para usança posterior, como fiz agora, impede-me de
reciclá-las e oferecê-las aos atuais consulentes noutras versões bem mais
alumiadas pela clareza dos novos tempos, ao se contar com as grandes
fulgurações das descobertas no terreno das novas tecnologias e com a expansão e
as melhorias dos programas de cultura, ciência, tecnologia e artes.
Inês, todavia, é morta
há tempos.
Verba volant; scripta manent!
(1) A fonte de onde
extraí o pensamento – NINA, A. Della -Dicionário
da Sabedoria, São Paulo: Fittipaldi, 1985 – não informa de qual
Sêneca é a frase, se de Lúcio Aneu Sêneca, o Filósofo, ou de seu pai, Marco
Aneu Sêneca, o Retórico.
(2) Talvez não seja
ocioso informar que a palavra é de som aberto – é – e que tem como diminutivo o
vocábulo acérvulo.
(3) A bem da elocução,
é inconveniente empregar estágio
para retratar tempo, época, quadra, como se vê amiudamente. Estágio tem essa
aplicação aqui procedida, como tempo para tirocínio e treinamento de alguns
ofícios, como de escritor, professor, advogado, médico, jornalista, por
exemplo.
(4) Costuma-se falar
“de cor e salteado”, mas pode ser empregada a expressão, semelhante, “decorado
e de salto, para diversificar e não persistir a mesmice.
(5) Suarabácti é,
consoante Salles Villar e Houaiss (2008), “... espécie de epêntese que consiste
em se desfazer um grupo consonantal por meio de intercalação de uma vogal, como
ocorreu com a palavra barata,
originária do antigo brata (latim blatta) ou com braúna – baraúna; anaptixe.
Etim. Sânscrito svarabhakti.Gram. Separação
por meio de vogal”.
(6) Bom é lembrar o
fato de que há outro Mário – o Mário Kepler Sobreira de Andrade ou Mário de
Andrade do Norte, engenheiro-agrônomo e poeta fortalezense, autor de Versos de Noite Próxima (05.07.1910;
05.02.1944).
(7) Dicção pouco
empregada na prosa e mais no metro, a for
significa “conforme o costume”, “à moda de”, “à maneira de”.
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