CHOVEU
Reginaldo Vasconcelos*
Reginaldo Vasconcelos*
Choveu. Ainda respinga. O Céu está bonito. Cearense, as nuvens de chumbo
não me pesam, mas me acometem a alma de levíssimas esperanças. Os odores de
umidade ozonizada, que dominam o ar em dia de chuva, provocam no meu povo uma
alegria irresistível, orgânica, instintiva – mesmo naqueles que não vivam da
lavoura.
Não vivo da lavoura, mas a lavoura vive em mim. Em dias assim, invade o
meu ser o cheiro bom do bamburral em flor, chamando a roçadeira dos caboclos
para o cultivo do bendito feijão, do milho abençoado, da ditosa macaxeira.
Então, ao roncar do trovão, dos confortos urbanos do lar moderno
transporto-me no éter para os campos ancestrais que os antigos amanhavam para
produzir o alimento, em que ordenhavam as vacas, em que namoravam as ninfas
brejeiras, quando jovens, e mais tarde fecundavam as matriarcas, sentindo o
hálito do curral ao lado da casa e ouvindo o canto dos capotes empoleirados no
terreiro.
Não se vive somente da matéria fática, da presença concreta, da atualidade
material. Vive-se muito do formato, do etéreo, do entorno. É do antigo e do
distante que se confeita o coração, edulcorado de lembranças e desejos. É de
coisas assim que se nutre a poesia, substrato da beleza.
Vou à praia. Chove ainda. As meninas estão lá, tantas e tão lindas, em
suas malhas generosas, cada uma entregando o corpo à natureza, ao sol, ao céu,
às salmouras salubres do oceano. Levo as minhas – as companheiras sempiternas,
as amigas, as filhas, as sobrinhas, as crianças, minha modesta contribuição
àquela paisagem humana e estética da vazante.
O amigo que passava pela orla senta conosco sob o abrigo, para que os mais
grados assuntos da convivência se desfiem. O tempo para, como se a ampulheta no
Universo houvesse vertido toda a sua areia por ali. Fala-se de música, vou à
Itália no voar dos sentimentos. De lá volto à infância, de quando o tio
italiano aparecia para beber vermute com meu pai, aldilá no pensamento.
A chuva cede. Tomo a quinta caipirinha. Microgomos de limão me explodem na
boca, entre grânulos de açúcar que estilhaçam, tudo rimando ricamente com o sabor
da cachaça, que aquece o espírito e acaricia o paladar. A tarde cai, o mar
avança, tomo o caminho de volta com a família. Viver é navegar no dia-a-dia.
*Reginaldo Vasconcelos
Advogado e Jornalista
Titular da Cadeira de nº 20 da ACLJ
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