domingo, 14 de junho de 2015

CRÔNICA (AM)

AS NUVENS RECICLADAS
Assis Martins*
(Direto de Bertioga – São Paulo)



Cala-te, meu triste coração, e cessa de lamentar-te, pois, por trás das NUVENS negras, o Sol continua a brilhar. (H.W; LONG-FELLOW – poeta estadunidense. YPortland-Maine, 27.02.1807; Cambridge-Mass., 24.03.1882).


Amigo diz que aprecia muito minhas crônicas, mas acha que elas têm sempre um final reticente. Ora, meu prezado, o propósito é justamente esse – conceder ao leitor a oportunidade de refletir sobre as intrincadas relações pessoais e impor o final que lhe aprouver.

Meu interesse é saborear os episódios do dia a dia na grandeza da sua simplicidade. Para sentir a fluidez da vida, não há necessidade de acontecimentos espetaculares, histórias dramáticas com finais apoteóticos.

Situações de todos os matizes surgem continuamente  seja nas filas dos ônibus, botequins, salões de beleza ou na conversa de barbeiros mentirosos (será redundância?). Basta abrir a janela para ver as contradições da interação humana.

Em toda geração, aparecem tipos pitorescos que marcam e se incorporam ao folclore das cidades. Na minha, houve a Vassoura, o Besourão, o Burra-Preta e muitos outros. O destaque, porém, é uma figura que eu vinha observando.

O cenário é o mais paradisíaco possível: amplo horizonte azul, uma lagoa de águas mansas que refletem quietude, coqueiros ondeantes, convidando à meditação, e, compondo essa imagem de calendário, nuvens fugidias disputam o seu lugar no infinito.

Essa imagem é belíssima para quem passa ao largo e em velocidade. Àquele que se aproxima, a realidade é outra. Na vegetação rasteira das margens, as pessoas jogam toda espécie de lixo, propiciando mau cheiro, sem contar com os inúmeros bueiros que ali deságuam.

No meio desse cenário, afinal, um toque de humanidade. Um mendigo é visto refestelado numa cadeira velha à sombra de um coqueiro, com um olhar perdido, próprio dos insanos, porém, com a postura altiva de um nobre arruinado.

Que impressões e lembranças passam em sua mente? A sua figura nos remete àqueles filósofos estoicos, que buscavam na contemplação da natureza os infindáveis mistérios do destino humano.

Os transeuntes passam, observam aquele tipo bizarro. E a indagação é comum: – de onde veio; será que não tem família?

Muitas são as opiniões a respeito da sua origem. Um catador de lixo emitiu a sua: – parece que esse cara é lá da banda do Acaraú, tinha terrenos e umas cabecinhas de gado, acabou perdendo tudo no jogo.

O sorveteiro arriscou: – ... conversa! um compadre meu, que compra carneiro no Tauá, cansou de ver ele na feira grande. Parece que foi desavença com mulher e aí descontrolou o juízo lá dele!
Nesse momento, foi aparteado: – o jeitão dele é de quem já foi grã-fino; a gente vê logo pelo modo como cruza as pernas. 

Tantas conversas, ditas com segurança, aumentaram minha curiosidade e resolvi ver bem de perto o homem que, na minha imaginação, já era um sério candidato a fazer parte do nosso folclore.

Ele tinha mesmo uma pose marcial e imponente naquele resto de cadeira; às vezes erguia a vista para o céu e, com um pedaço de carvão, fazia desenhos toscos.

Era como se cada nuvem servisse de modelo para aquela fauna fantástica; aqui um arremedo de pavão, mais adiante, seria talvez um tigre, e continuava, ininterruptamente, reciclando os fiapos de nuvens ao sabor das suas ilusões.

Agora, uma decepção para mim e para o amigo reclamante dos finais reticentes, citado no início: sumiu tão de inopino como aparecera nas margens da lagoa. Um mecânico já me disse que viu um cara muito parecido com ele na fila do Bolsa-Família, lá perto da sua casa.


*Assis Martins
Funcionário da U.F.C.
Cronista e Ilustrador.
Bacharel em Geografia e Tecnologia e Gestão do Ensino Superior pela Universidade Federal do Ceará

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