segunda-feira, 30 de junho de 2014

RESENHA LITERÁRIA (DAF)

CIÚMES  RETROATIVOS,
TRAIÇÕES  IMAGINÁRIAS OU CHIFRES  QUE O PRÓPRIO PERSONAGEM ATRIBUIU A SI MESMO, NO ROMANCE DO CHILENO JORGE EDWARDS
Durval Aires Filho*

Parto a queima-roupa: que destino você tomaria se o seu melhor amigo tombasse morto e sua mulher, de uma hora para outra, armasse o maior vexame, perdendo as estribeiras, com choros compulsivos, a beira de um ataque de nervos, em lamentos profundos, com visíveis sentimentos provenientes das entranhas, alheios às pessoas, sem a menor cerimônia, desconectada do tempo e do espaço?

Teria dois caminhos distintos a seguir. Primeiro, relegaria a ocorrência a um segundo plano, fingindo desconhecimento, rebaixando o fato como o mais banal possível. A segunda via, a mais rara, recomendaria a investigação do suposto adultério. “Os gestos convencem e a razão desconfia”, diria Carlos Nejar. É essa opção que o escritor chileno Jorge Edwards escolheu para o seu romance “A Origem do Mundo” que a Cosac Naify acabou de publicar e distribuir junto aos leitores brasileiros.

O tema adultério não é original. É comum em velórios de pessoas endinheiradas, a presença de mulheres jovens, as quais mantiveram romances secretos com o extinto, disputando espaços com as legítimas esposas. Existe um farto material sobre o assunto, mas há uma singularidade neste pequeno e grande romance: a forma de narrar, as estratégias desenvolvidas pelo autor, os recursos técnicos em que plasmou a sua ficção de uma maneira insólita e, até despretensiosa, inovadora.

O escritor chileno abre seu romance com uma brincadeira um tanto chistosa, quando o personagem principal reconhece a sua mulher em um quadro indecoroso, exposto no Museu d’Orsay, dada as evidentes semelhanças de pesos e medidas com o óleo retratado. E, ali, se lembra do amigo Felipe Diaz e de sua mania de fotografar amantes nuas em poses obscenas. Isso há uma semana, antes de encontrarem o cadáver desse amigo do casal.

Vivendo há trinta anos harmoniosamente com Sílvia, uma mulher bonita, e vinte anos mais nova, o médico Patrício Illanes apresenta-se como o oposto de Felipe Diaz, um sujeito dado à conquista e sedução. É, como ele, um intelectual latino americano que passou pela religião do comunismo, mas, diferentemente, queda ao alcoolismo, enquanto ele é o cara que se cuida, tem hábitos saudáveis, e se prepara para a velhice estendida e duradoura.

E que faz água no barco existencial desse personagem que no romance absorve as qualidades de elegância?

Por dois orifícios: a idade de Felipe, de sua mulher Sílvia, (ambos mais jovens), geradora do ciúme, e a questão da amizade, posto que o amigo foi classificado como um sujeito sem escrúpulos, mas, ao mesmo tempo, “um bom amigo por vocação”. Como diria o escritor Frederico Pernambucano de Mello: “um amigo intrigante”. Aliás, por este fabuloso personagem, Edwards constrói todas as referências esquerdistas dos anos 60, desde os Congressos dos PCUS, com as quais o amigo traduzia os informes de Kruchev, até as performances de imitação, as observações jocosas, francamente desrespeitosas a Fidel, a quem chamava de “barbeta”, porém, permitidas, dadas a invasão da Tchecoslováquia, e outros fatos que o conduziram para o ceticismo político e a consequente substituição para uma vida amoral, com vícios excessivos, voltados ao álcool, drogas e mulheres, o que representa também o drama dos latino-americanos exilados.

É claro que o médico desconfiava que a sua polidez teria uma cariz rotunda, burocrática demais, extremado ao comportamento debochado do amigo, com certeza, mais sedutor e alegre. Mas o que está envolta dessa curiosa narrativa é a decadência do ser humano, as desilusões esquerdistas, o demônio da vida e da morte, que, por sua vez, levam ao demônio do sexo e do desejo.

Não cabe olvidar que também a própria dissimulação, que é uma espécie de ficção exercida no cotidiano, configura neste romance, um suplemento necessário à existência humana e, por assim dizer, nesta narrativa, resolve os impasses da trama.

O fato é que o peso da idade não encontra paralelo com as aflições mais particulares do médico setentão, mas ele próprio traz a receita de que esses conflitos pessoais perpassam por todas as fases do homem.

Jorge coloca na boca do personagem central: “A pessoa acredita que as obsessões, os ciúmes, os famosos fantasmas eróticos, vão terminar com os anos. Eu pelos menos, aos quarenta, tinha certeza de que terminariam aos cinquenta”. Passando agora, depois dos setenta, por estes transtornos, negativamente conclui: “nem aos oitenta. Nem aos duzentos anos!”.

A opção deliberada do médico parte do princípio de que aquilo que lhe consome é aquilo que lhe arrasta. Antes de colher depoimentos de outros personagens, para comprovar a sua suspeita, -- parcos relatos os quais revelaram inverossímeis e, muitas vezes, movediços e patéticos -- Patrício vai à caça de provas documentais. Penetra no apartamento do saudoso Felipe. Revira correspondências e fotos. Acha uma réplica fotográfica da tela indecorosa de Gustavo Coubert (o quadro do Museu d’Orsay), e debaixo dela, uma fotografia três por quatro de Sílvia. Para ele, essa contemplação da imagem erótica seria a destruição completa de sua felicidade, pois a genitália exposta, embora não se veja o rosto, encoberto por lençóis, é igualzinho a de sua mulher, associando, tormentosamente, as preferências do amigo, pródigo em fotos de amantes, que ele mesmo registrava em suas inúmeras aventuras.

Neste contexto, não é difícil verificar que algumas técnicas mais sofisticadas de narração são aperfeiçoadas por Edwards e, bem assim, tomadas por empréstimo do cinema. Interessante é quando Patrício se apossa da foto de sua mulher, várias projeções são plastificadas ao mesmo tempo. Ele trava, inicialmente, uma peleja consigo, mas penetra, na construção, Silvia e um terceiro personagem, que é ele mesmo, mas em situações ou conjecturas futuras, portanto, em antecipações que não existiram de fato.
  
Vejamos esse curioso e sofisticado recurso. Primeiro, o médico, tomado pela obsessão, com a foto de mulher na mão, diante do espelho iluminado e da possibilidade inquisitorial, lembra de Stálin. Na mesma sequência, permeia a voz de Sílvia, recortado de algum diálogo do passado: “O único que se libertou a tempo foi o Felipe”. E ele complementa: “porque era muito mais cínico do que nós”. Mas o terceiro personagem que não existe, nem fez parte do antigo diálogo, é a sua consciência, que dispara: “Não é verdade. Felipe era mais lúcido, mais independente, menos covarde”.

A primeira cena de abertura deste livro vai se desaguar no último capítulo, mas com pontos de vistas diferentes. Na verdade, cuida-se de uma tortuosa reconstrução, uma brincadeira tola que, se não houvesse o vetor morte, não se tornaria uma sofrida obsessão, transformando-se em algo sério e grave, que permeia toda narrativa, nos capítulos seguintes a morte do incorrigível amigo.

Seria inútil e disparatado infirmar as supostas influências que o escritor chileno tomou de outros escritores, para a tecitura de sua escrita. Não dá para vê Machado de Assis, nem Arthur Doyle, nem Sábato, nem Carpentier, nem Rubem Dário, nem Neruda, nem os “filhos abastados da narrativa de Borges e Júlio Cortázar”, como ele próprio atribui ao amigo Felipe Diaz, autor de uma peça teatral que representou um grande fracasso de público e de crítica.

O que se pode dizer, necessariamente, é que este romance tem a atmosfera momentânea de uma dúvida machadiana. Possui uma rigidez formal, comum aos escritores do leste europeu, e, está recheado de deduções exatas, hauridas dos romances policiais, além de formar uma trama criativamente excepcional, a exemplo dos grandes nomes da literatura latino-americana.

Mas um detalhe importante deve chamar atenção: a fragmentação empreendida por Jorge Edwards, contraditoriamente, tem o condão de unir, de tecer uma prosa concisa, una e compactada, sem que para isso possa escapulir para a descontinuidade da narrativa, ou para o abandono da configuração de personagens autônomos e profundos.

A humanidade de Patrício Illanes, por fim, recomenda que é melhor viver uma tragédia sentimental, do que viver uma vida de morto. Ele corre riscos, mas vive outra vez, como um jovem atormentado e corroído pelo ciúme, mas, ao lado dessa sina, ele é capaz de erguer força e vitalidade. A boa notícia é que, se a arte imita a vida como ela é, neste saboroso romance, a ficção é definitivamente traída pela realidade. Afinal, os segredos, revelados ou não, só enganam a eles mesmos.

 *Durval Aires Filho
Magistrado, Jornalista e Escritor
Membro Honorário da ACLJ

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