segunda-feira, 9 de junho de 2014

ARTIGO (RMR)


REPÚBLICA, IGUALDADE E ESPECIFICIDADE
Rui Martinho Rodrigues*

Quando os atenienses resolveram sistematizar as suas leis formaram-se dois partidos: republicano e aristocrático. Republicanos enfatizavam a igualdade fundada nas necessidades havidas como iguais. Alegavam que todo homem tem uma boca e um estômago. A igualdade universal seria o grande valor (isonomia).

Aristocratas, liderado por Solon, o grande legislador ateniense, alegavam que as leis não deveriam tratar igualmente os homens, mas proporcionalmente às desigualdades, produzindo boas leis (eunomia), e a referência da proporção era o mérito.

Meritocracia e igualitarismo se alternaram ao longo da história, como a base da legitimidade. Mérito e igualdade foram sucessivas vezes ressignificados. A modernidade, com o espírito de universalidade e lógica rigorosa, reafirmou a isonomia. A Assembleia Nacional Constituinte da Grande Revolução Francesa declarou a igualdade, não dos seus nacionais, mas de todos os homens. Buscava-se a universalidade. Newton anunciara leis universais. Consagrava-se a isonomia universal.

A pós-modernidade rompeu com as universalidades, focando nas especificidades. Agora o fundamento não é a necessidade comum, fundada no número de bocas e estômagos. As necessidades especiais amparam a eunomia via proporcionalidade das necessidades. Não se alega o mérito, mas as necessidades. Desde de que John Rawls e Donald Dworking polemizaram o mérito, a proporcionalidade mudou o seu foco.

O STF, no início dos anos 2000, mudou o entendimento e permitiu a investidura de um juiz cego, que nem sequer sabia ler em Braile. Razões humanitária louváveis alicerçaram a decisão. Não se admitiria um juiz que não soubesse ler, mas admite-se um juiz que não pode ler, que depende de terceiros para o exame de provas e não pode ler a linguagem corporal de testemunhas e depoentes.

Os direitos especiais são absolutos? Não existe direito absoluto. Qual o limite da eunomia? Certamente que o interesse social. Evitar a fragmentação pós-moderna do discurso, preservando a intelegibilidade da lei; regras para todos na mesma situação; circunscrever-se às decisões parlamentares, sendo vedadas à iniciativa de tecnocratas de ministérios; a definição clara de quem é hipossuficiente, contida na reserva legal, incluindo exigência de que a desvantagem deve ser involuntária; e a compensação vinculada à desvantagem específica; o benefício visado deve ser parte do mínimo existencial; e o interesse social não pode ser prejudicado.

No exemplo citado o benefício foi ser juiz, que não faz parte do mínimo existencial. Tal concessão fere o interesse social, em face de um magistrado que não poderá ler o processo, nem ver a linguagem corporal dos depoentes.

Uma moça monocular, de família abastada, ganhou o privilégio de pagar a metade da anuidade de um curso de medicina. Neste caso o benefício não está vinculado à desvantagem específica nem o curso é mínimo existencial.

É preciso ter critérios para ser justo.


*Rui Martinho Rodrigues
Professor e Advogado
Presidente da ACLJ
Titular de sua Cadeira de nº 10

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