Rogério
Bessa do Brasil ...
e do mundo
de hoje
Geraldo Jesuino*
Represento uma das
pessoas a quem é permitido o privilégio de ler obras em primeira mão, com
vistas a lhes emprestar alguma experiência de artesão editorial e gráfico no
(ainda para mim) sagrado ritual da transformação de um texto em livro. Tais
exemplares são, quase sempre, pré-originais [1], em versão impressa ou digital, via de regra, bem cuidados e dos quais se
pretende edição.
Cumpro, é bem verdade,
um sacerdócio profissional que cobra, em algumas (poucas) vezes, pesado ônus,
mas, em contraposição, noutras tantas, me obsequia com mimos de enlevo e
alevantada distinção. Trata-se, nesse particular, do exercício de partilhar a
intimidade do autor no instante imediatamente posterior à gênese da sua
criação, quando sofre ou exulta, reagindo ou se submetendo às intervenções dos
seus editores, removendo, adindo,
modificando, revisando, corrigindo, polindo, enfim, à exaustão, detalhes
pouquíssimos e personalísticos, no intento de alcançar um invejável estado de
arte, próximo à perfeição, a merecer o – Parla! de Michelangelo [2].
Recentemente, em uma
dessas gratas oportunidades, tive no alcance da leitura o modelo digital
inédito de Poesia do Brasil e do mundo de hoje, do professor, linguista,
poeta e acadêmico Rogério Bessa.
Quem o conhece em
pessoa, ainda que superficialmente, ou no corpus
da sua obra, seguramente dispõe de elementos para não se agastar, ao vislumbrar
surpresas em qualquer quadrante do seu desempenho. Isto porque, a homens de tão
elevada e disciplinada competência, quer no trato pessoal sempre afável e
refinado, ou na obstinada austeridade exercida nos domínios da academia, ou,
ainda, nos tortuosos e intricados caminhos da pesquisa à qual se dedica, bem
como no acurado exame de cada minúcia de sua obra, são imerecidas as suspeitas.
Mais seguro é lhe confirmar, de véspera e sem sobrosso, resultados exemplares,
pois, é sabido, obtidos mediante calma e controlada persistência ao cabo de
silencioso, metódico e ousado decurso de criação.
Tudo isso tranquiliza
a expectativa de quem lê Rogério Bessa, mas, desta feita, é forçoso me
confessar apanhado em sobressalto.
Não fez piso da minha
formação qualquer domínio confiável da Ciência de Ferdinand de Saussure e
Roland Barthes, o que me pune com a frustração de não ter o devido alcance à
obra acadêmica deste meu amigo e colega professor, como o experimentam, com
esplendor pouco ordinário, os professores doutores José Alves Fernandes, José
Américo Bezerra Saraiva e Adriano Espínola. Como à leitura de poesia, no
entanto, não se interpõe nenhum prerrequisito além de alguma alfabetidade [3] e cultivo de qualquer refinamento de sensibilidade, pude me dedicar ao deleite
de ler parte de sua produção poética.
Assim o foi com Redescoberta
de Orfeu ou o mundo nunca encontrado [4] ,
levado a lume em 1999 e a mim presenteado pelo próprio autor, alguns anos
depois. O livro foi lido sofregamente em primeira instância e depois, mais
calmamente, outra ... e muitas vezes.
Ao cabo de um tempo,
quase acostumado a um intraduzível, mas agradável, estarrecimento quanto à obra
no seu aspecto geral – o que, certamente, envolveu as minhas especulações de
editor – encontrei no mestre, amigo e patrono José Alcides Pinto o adequado
antídoto para a minha inquietação: “Duvido muito que mais de duas dúzias de
pessoas tenham lido o livro, excetuando-se os alunos da UFC, já que Rogério foi
professor da Universidade. [...] Construiu ele sua poesia como bem quis,
segundo sua natureza sensível, indiferente aos modismos dos movimentos
literários das últimas décadas”[5],
assegura o paladino Poeta de São Francisco do Estreito. De fato, Redescoberta
de Orfeu ou o mundo nunca encontrado não é obra de fácil entendimento e seu
afeiçoamento gráfico não encerra recursos técnicos ou estéticos a situá-lo em
competição de venda no mercado editorial.
Nada o credenciava a
ser mais um entre os tantos candidatos a best-seller - e não o foi,
segundo com tantos outros livros de reconhecido valor não ocorreu - mas JAP,
fiel a sua atitude de não prestar louvores gratuitos, bem assim leal à
reconhecida aversão aos patamares e tendências de época, sentenciou: “O leitor
tem agora em mãos um dos livros de poesia mais importantes que já se editou
nesses últimos tempos [...]”.
Julguei, portanto,
estar diante da obra de um poeta no ápice da criatividade e, ao seu modo, na
plenitude do fazer poético.
Tal sucedeu, no
entanto, já faz bastante tempo e, à época, abstraí um aspecto de especial
importância acerca do qual nos alerta agora o autor “[...] tudo urge e
ruge,/preciso é dar tempo ao tempo/como em ferro faz a ferruge(m)/sem o menor
contratempo; [...]”.
Pois bem, não havia
pressas. Rogério Bessa parece não se arreliar com essas preocupações. Seu modus
operandi é marcado pelo zelo, em detrimento da oportunidade. Esta, aliás,
característica há muito praticada pelos virtuosos, e já identificada por J. W.
Goethe: Tais pessoas talentosas muitas vezes nos deixam impacientes, uma vez que
é raro
nos concederem imediatamente aquilo que desejamos.
Apenas por este caminho, todavia, é que se
consegue realizar as coisas mais elevadas [6].
Em Redescoberta de
Orfeu ou o mundo nunca encontrado, nosso autor adota a regra do jogo entre
o fazer poético e a linguagem, no qual se atribui à criatividade o papel de
promover renovação e expansão dos limites da Língua [7]. Assume um torneio linguístico/poético que beira o erudito e se posta, desta
feita, inóspito ao leitor comum, ainda deseixado da boa capacidade de recepção
à Martin Barbero.
Em oposição, e
estrategicamente, quero supor, dota seus poemas de rimas, que, por sua vez,
acentuam o ritmo e criam aparente proximidade com a forma dita clássica. Tudo
isso aponta para uma tática que aparenta trazer embutida uma intenção de
contida funcionalidade num desenho de projeto poético preconcebido e ajustado.
Outra vez me reporto
ao argumento tempo, com vistas a justificar a prefalada surpresa: 15 anos
separam as duas edições e, nesse lapso, o poeta cuidou de se acercar dos
matizes do mundo, merecer a afirmação do autor de O amolador de punhais [8] e negar minhas conjecturas.
Poesia do Brasil e do
mundo de hoje me posta pasmado, a
purgar a petulância de ter ousado fazer juízo acerca dos estados evolutivos e
patamares-limite da criatividade. Vence a surpresa ante a execução do projeto,
na sua plenitude.
A liberdade pleiteia a
forma [9],
enquanto a ousadia assume as diretrizes do pensamento e da criação. Rogério
Bessa faz-se único e múltiplo, antigo e contundentemente atual, num tempo no
qual existe, satiriza, questiona e inquire. Não se permite deixar-se à mercê de
dubiedades ou de fortuitas opiniões/definições. Demarca-se de moto proprio: “poeto a meu modo / tenho meu
modo de ser//muito pouco me incomodo / se meu modo não se vê//em meu modo em
mim estou / mas não sou nenhum Buffon//não visto casaca de seda / nem uso
punhos de renda//poeto como às favas indo / à essência do homem se vai”, ao
mesmo mote de Lemiski ao postar-se escritor
em “Razão de ser”: “Escrevo e pronto/[...]/ ninguém tem nada com isso” [10].
Em seguida, como às
favas indo, nosso autor exorta a poesia a acomodar-se aos seus intento e estilo
(ou estilos) de poeta andarilho [11], desatado dos modismos ou tendências de qualquer natureza. Adotá-los ou
ignorá-los passa a ser opção do poema exigi-los ou não. Afastar-se das
convenções até onde lhe permite a ousadia é a sua ferramenta para se encontrar,
do seu jeito, com a Língua, experimentando, como o fazem, também, outros poetas
brilhantes e arredios, a exemplo de Manoel de Barros: “Fujo do mesmal pela renovação sintática”[12].
Aqui, nosso autor não
assente na sobrevivência de intenções dissimuladas. Não deixa dúvidas quando
elege outros poetas como leitmotiv. A
João Cabral acompanha nas divagações poético-filosófico-visionárias acerca do
tempo, seus efeitos e medidas [13], além de lhe assumir a forma enxuta, quase seca de metáforas. A Millôr Fernandes
dedica sua opção por uma linguagem com pigmentos de humor e sátira, presentes
em quase toda esta obra, além de homenagem em, principalmente, “Paródia da
epígrafe da parte I”, (pag. 179) entre outros poemas.
Outras predileções,
também explicitadas, atuam em campos diferentes. Nestas, brota a admiração
pura, onde o estilo arrefece os transportes da ousadia e se dedica em forma e
conteúdo aos admirados, ora no trajeto da paródia, outras vezes nos matizes
sentimentais, ora by other paths.
Acerca de poetas,
certa vez, arrisquei-me a assinalar que “[...] são habitantes de universos
superiores, onde a beleza e a sensibilidade estética não se poupam e com eles
se entrelaçam em perfeita comunhão”[14] .
Assim vejo e conheço
Rogério Bessa. Se não o alcanço linguista, o diviso poeta que se revela muitos,
mas permanece uno, em essência, contido, mas narcisista[15],
ao se postar explícito em sua poesia.
Abro sempre a porta
dos meus olhos e dos próprios rudes talentos de leitor aos poetas e, aqui, aos
Rogérios Bessas, como nesse enigmático - “daí então,/já não serei/mais que,
senão/esse não ser”; sarcástico - “[...] não é bispo, senão grande bispote,
muito menos que peça de xadrez”; existencial - “tudo tem seu
ramerrão,/cansamo-nos, mesmas coisas,/andar, ver o mesmo chão”; e lírico no
excelente - “Direitos e deveres do homem” – sob arremate suntuoso, assim:
“vivendo na ilusão de estarmos antes/ou pensando que ainda somos ontem”.
Privilégio tive por
ter lido Poesia do Brasil e do mundo de hoje ainda como um sonho,
inacabado. Concessões temos, todos, por decifrá-lo agora como realidade, pronto.
Geraldo Jesuino da Costa*
Jornalista - Professor - Escritor - Artista Plástico
Titular da Cadeira de nº 32 da ACLJ
Jornalista - Professor - Escritor - Artista Plástico
Titular da Cadeira de nº 32 da ACLJ
[1] Termo
empregado para definir o original (ou pequeno número de cópias dele) enviado a
poucos leitores, com vistas a recolher opiniões que levem à concretização
daquele definitivo que servirá de base para a reprodução. In: LAUFER, Roger. Introdução à
textologia, São Paulo: Perspectiva, 1980, p.14.
[2] Expressão
interjetiva atribuída a Michelangelo di Ludovico Buonarroti Simoni, após
concluir o seu Moisés.
[3] DONDIS,
Donis A. A
sintaxe da linguagem visual. São Paulo: Martins Fontes,
1977, p.1 (alfabeticidade é
neologismo não dicionarizado).
[4] BESSA, Rogério. Redescoberta de
Orfeu ou o mundo nunca encontrado, Sobral:
ASEL/Caiçara, 1999.
[5] Ver texto na
íntegra ao final desta obra, seção “Obras anteriores do poeta e a crítica”.
[6] Apud
MANN. Thomas O
escritor e sua missão, trad. de Cristina Michandellis, Rio de Janeiro:
Zahar, 2011, p.80.
[7] In
FLUSSER, Vilém A
escrita: há futuro para a escrita?, São Paulo: Annablume,
2010, p115.
[8] cf.
Seção “Outras obras do autor e a crítica”, ao final desta.
[9] “A forma, em sua
representação, é aquilo que há em nós: apenas uns artifícios para comunicar
ideias, sensações, uma vasta poesia”. Balzac in; MANGUEL, Alberto Lendo imagens:
uma história de amor e ódio, São Paulo: Cia. das Letras, 2001, p29.
[10] LEMINSKI,
Paulo. Toda
poesia, São Paulo: Cia das Letras, disponível em
<>
[11] No
sentido que se lê na resposta de Manoel de Barros a Ana Cecília Martins, In:
Fundação Biblioteca Nacional Poesia
sempre, Ano 13, N 21, 2005, p.13. “Poesia é uma aventura
errática. Eu acho parecido com a aventura dos andarilhos. Os andarilhos não
andam por caminhos traçados. Eles fazem seus caminhos”.
[12] Ibidem,
p.13.
[13] Ver,
por exemplo, “O relógio” e “Alpendre no carnaval”, In:MELO NETO, João Cabral
de. Antologia
Poética, 2. ed., Rio de Janeiro: Livraria José Olympio
Editora - Sabiá, 1973, p68/73, e (principalmente) “O relógio”, na página 46
desta obra, entre outras tantas referências ao mesmo
tema.
[14] COSTA,
Geraldo Jesuino da. Como
abraços, Fortaleza: Imprece Editorial, 2014, p 29.
[15] No
sentido explicitado por Manoel de Barros in: Poesia
Sempre, op. cit., p.17: “O poeta é um narcisista. Cada
verso é ele no espelho”.
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