quinta-feira, 12 de junho de 2014

ARTIGO (GJ)

Rogério Bessa do Brasil ...
e do mundo de hoje
Geraldo Jesuino*

Represento uma das pessoas a quem é permitido o privilégio de ler obras em primeira mão, com vistas a lhes emprestar alguma experiência de artesão editorial e gráfico no (ainda para mim) sagrado ritual da transformação de um texto em livro. Tais exemplares são, quase sempre, pré-originais [1], em versão impressa ou digital, via de regra, bem cuidados e dos quais se pretende edição.

Cumpro, é bem verdade, um sacerdócio profissional que cobra, em algumas (poucas) vezes, pesado ônus, mas, em contraposição, noutras tantas, me obsequia com mimos de enlevo e alevantada distinção. Trata-se, nesse particular, do exercício de partilhar a intimidade do autor no instante imediatamente posterior à gênese da sua criação, quando sofre ou exulta, reagindo ou se submetendo às intervenções dos seus editores, removendo, adindo, modificando, revisando, corrigindo, polindo, enfim, à exaustão, detalhes pouquíssimos e personalísticos, no intento de alcançar um invejável estado de arte, próximo à perfeição, a merecer o – Parla!  de Michelangelo [2].

Recentemente, em uma dessas gratas oportunidades, tive no alcance da leitura o modelo digital inédito de Poesia do Brasil e do mundo de hoje, do professor, linguista, poeta e acadêmico Rogério Bessa.

Quem o conhece em pessoa, ainda que superficialmente, ou no corpus da sua obra, seguramente dispõe de elementos para não se agastar, ao vislumbrar surpresas em qualquer quadrante do seu desempenho. Isto porque, a homens de tão elevada e disciplinada competência, quer no trato pessoal sempre afável e refinado, ou na obstinada austeridade exercida nos domínios da academia, ou, ainda, nos tortuosos e intricados caminhos da pesquisa à qual se dedica, bem como no acurado exame de cada minúcia de sua obra, são imerecidas as suspeitas. Mais seguro é lhe confirmar, de véspera e sem sobrosso, resultados exemplares, pois, é sabido, obtidos mediante calma e controlada persistência ao cabo de silencioso, metódico e ousado decurso de criação.

Tudo isso tranquiliza a expectativa de quem lê Rogério Bessa, mas, desta feita, é forçoso me confessar apanhado em sobressalto.

Não fez piso da minha formação qualquer domínio confiável da Ciência de Ferdinand de Saussure e Roland Barthes, o que me pune com a frustração de não ter o devido alcance à obra acadêmica deste meu amigo e colega professor, como o experimentam, com esplendor pouco ordinário, os professores doutores José Alves Fernandes, José Américo Bezerra Saraiva e Adriano Espínola. Como à leitura de poesia, no entanto, não se interpõe nenhum prerrequisito além de alguma alfabetidade [3]  e cultivo de qualquer refinamento de sensibilidade, pude me dedicar ao deleite de ler parte de sua produção poética.


Assim o foi com Redescoberta de Orfeu ou o mundo nunca encontrado  [4] , levado a lume em 1999 e a mim presenteado pelo próprio autor, alguns anos depois. O livro foi lido sofregamente em primeira instância e depois, mais calmamente, outra ... e muitas vezes.

Ao cabo de um tempo, quase acostumado a um intraduzível, mas agradável, estarrecimento quanto à obra no seu aspecto geral   o que, certamente, envolveu as minhas especulações de editor  encontrei no mestre, amigo e patrono José Alcides Pinto o adequado antídoto para a minha inquietação: “Duvido muito que mais de duas dúzias de pessoas tenham lido o livro, excetuando-se os alunos da UFC, já que Rogério foi professor da Universidade. [...] Construiu ele sua poesia como bem quis, segundo sua natureza sensível, indiferente aos modismos dos movimentos literários das últimas décadas”[5], assegura o paladino Poeta de São Francisco do Estreito. De fato, Redescoberta de Orfeu ou o mundo nunca encontrado não é obra de fácil entendimento e seu afeiçoamento gráfico não encerra recursos técnicos ou estéticos a situá-lo em competição de venda no mercado editorial.

Nada o credenciava a ser mais um entre os tantos candidatos a best-seller - e não o foi, segundo com tantos outros livros de reconhecido valor não ocorreu - mas JAP, fiel a sua atitude de não prestar louvores gratuitos, bem assim leal à reconhecida aversão aos patamares e tendências de época, sentenciou: “O leitor tem agora em mãos um dos livros de poesia mais importantes que já se editou nesses últimos tempos [...]”.

Julguei, portanto, estar diante da obra de um poeta no ápice da criatividade e, ao seu modo, na plenitude do fazer poético.

Tal sucedeu, no entanto, já faz bastante tempo e, à época, abstraí um aspecto de especial importância acerca do qual nos alerta agora o autor “[...] tudo urge e ruge,/preciso é dar tempo ao tempo/como em ferro faz a ferruge(m)/sem o menor contratempo; [...]”.

Pois bem, não havia pressas. Rogério Bessa parece não se arreliar com essas preocupações. Seu modus operandi é marcado pelo zelo, em detrimento da oportunidade. Esta, aliás, característica há muito praticada pelos virtuosos, e já identificada por J. W. Goethe: Tais pessoas talentosas muitas vezes nos deixam impacientes, uma vez que é raro nos concederem imediatamente aquilo que desejamos. Apenas por este caminho, todavia, é que se consegue realizar as coisas mais elevadas [6].

Em Redescoberta de Orfeu ou o mundo nunca encontrado, nosso autor adota a regra do jogo entre o fazer poético e a linguagem, no qual se atribui à criatividade o papel de promover renovação e expansão dos limites da Língua [7]. Assume um torneio linguístico/poético que beira o erudito e se posta, desta feita, inóspito ao leitor comum, ainda deseixado da boa capacidade de recepção à Martin Barbero.

Em oposição, e estrategicamente, quero supor, dota seus poemas de rimas, que, por sua vez, acentuam o ritmo e criam aparente proximidade com a forma dita clássica. Tudo isso aponta para uma tática que aparenta trazer embutida uma intenção de contida funcionalidade num desenho de projeto poético preconcebido e ajustado.

Outra vez me reporto ao argumento tempo, com vistas a justificar a prefalada surpresa: 15 anos separam as duas edições e, nesse lapso, o poeta cuidou de se acercar dos matizes do mundo, merecer a afirmação do autor de O amolador de punhais [8] e negar minhas conjecturas.

Poesia do Brasil e do mundo de hoje me posta pasmado, a purgar a petulância de ter ousado fazer juízo acerca dos estados evolutivos e patamares-limite da criatividade. Vence a surpresa ante a execução do projeto, na sua plenitude.

A liberdade pleiteia a forma [9], enquanto a ousadia assume as diretrizes do pensamento e da criação. Rogério Bessa faz-se único e múltiplo, antigo e contundentemente atual, num tempo no qual existe, satiriza, questiona e inquire. Não se permite deixar-se à mercê de dubiedades ou de fortuitas opiniões/definições. Demarca-se de moto proprio: “poeto a meu modo / tenho meu modo de ser//muito pouco me incomodo / se meu modo não se vê//em meu modo em mim estou / mas não sou nenhum Buffon//não visto casaca de seda / nem uso punhos de renda//poeto como às favas indo / à essência do homem se vai”, ao mesmo mote de Lemiski  ao postar-se escritor em “Razão de ser”: “Escrevo e pronto/[...]/ ninguém tem nada com isso [10]. 

Em seguida, como às favas indo, nosso autor exorta a poesia a acomodar-se aos seus intento e estilo (ou estilos) de poeta andarilho [11], desatado dos modismos ou tendências de qualquer natureza. Adotá-los ou ignorá-los passa a ser opção do poema exigi-los ou não. Afastar-se das convenções até onde lhe permite a ousadia é a sua ferramenta para se encontrar, do seu jeito, com a Língua, experimentando, como o fazem, também, outros poetas brilhantes e arredios, a exemplo de Manoel de Barros: “Fujo do mesmal  pela renovação sintática”[12].

Aqui, nosso autor não assente na sobrevivência de intenções dissimuladas. Não deixa dúvidas quando elege outros poetas como leitmotiv. A João Cabral acompanha nas divagações poético-filosófico-visionárias acerca do tempo, seus efeitos e medidas [13], além de lhe assumir a forma enxuta, quase seca de metáforas. A Millôr Fernandes dedica sua opção por uma linguagem com pigmentos de humor e sátira, presentes em quase toda esta obra, além de homenagem em, principalmente, “Paródia da epígrafe da parte I”, (pag. 179) entre outros poemas.

Outras predileções, também explicitadas, atuam em campos diferentes. Nestas, brota a admiração pura, onde o estilo arrefece os transportes da ousadia e se dedica em forma e conteúdo aos admirados, ora no trajeto da paródia, outras vezes nos matizes sentimentais, ora by other paths.

Acerca de poetas, certa vez, arrisquei-me a assinalar que “[...] são habitantes de universos superiores, onde a beleza e a sensibilidade estética não se poupam e com eles se entrelaçam em perfeita comunhão”[14] .

Assim vejo e conheço Rogério Bessa. Se não o alcanço linguista, o diviso poeta que se revela muitos, mas permanece uno, em essência, contido, mas narcisista[15], ao se postar explícito em sua poesia.

Abro sempre a porta dos meus olhos e dos próprios rudes talentos de leitor aos poetas e, aqui, aos Rogérios Bessas, como nesse enigmático - “daí então,/já não serei/mais que, senão/esse não ser”; sarcástico - “[...] não é bispo, senão grande bispote, muito menos que peça de xadrez”; existencial - “tudo tem seu ramerrão,/cansamo-nos, mesmas coisas,/andar, ver o mesmo chão”; e lírico no excelente - “Direitos e deveres do homem” – sob arremate suntuoso, assim: “vivendo na ilusão de estarmos antes/ou pensando que ainda somos ontem”.

Privilégio tive por ter lido Poesia do Brasil e do mundo de hoje ainda como um sonho, inacabado. Concessões temos, todos, por decifrá-lo agora como realidade, pronto.

Geraldo Jesuino da Costa*
Jornalista - Professor - Escritor - Artista Plástico
Titular da Cadeira de nº 32 da ACLJ



[1] Termo empregado para definir o original (ou pequeno número de cópias dele) enviado a poucos leitores, com vistas a recolher opiniões que levem à concretização daquele definitivo que servirá de base para a reprodução. In: LAUFER, Roger. Introdução à textologia, São Paulo: Perspectiva, 1980, p.14.
[2] Expressão interjetiva atribuída a Michelangelo di Ludovico Buonarroti Simoni, após concluir o seu Moisés.
[3] DONDIS, Donis A. A sintaxe da linguagem visual. São Paulo: Martins Fontes, 1977, p.1 (alfabeticidade é neologismo não dicionarizado).
[4] BESSA, Rogério. Redescoberta de Orfeu ou o mundo nunca encontrado, Sobral: ASEL/Caiçara, 1999.
[5] Ver texto na íntegra ao final desta obra, seção “Obras anteriores do poeta e a crítica”.
[6] Apud MANN. Thomas O escritor e sua missão, trad. de Cristina Michandellis, Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p.80.
[7] In FLUSSER, Vilém A escrita: há futuro para a escrita?, São Paulo: Annablume, 2010, p115.
[8] cf. Seção “Outras obras do autor e a crítica”, ao final desta.
[9] “A forma, em sua representação, é aquilo que há em nós: apenas uns artifícios para comunicar ideias, sensações, uma vasta poesia”. Balzac in; MANGUEL, Alberto Lendo imagens: uma história de amor e ódio, São Paulo: Cia. das Letras, 2001, p29.
[10] LEMINSKI, Paulo. Toda poesia, São Paulo: Cia das Letras, disponível em <>
[11] No sentido que se lê na resposta de Manoel de Barros a Ana Cecília Martins, In: Fundação Biblioteca Nacional Poesia sempre, Ano 13, N 21, 2005, p.13. “Poesia é uma aventura errática. Eu acho parecido com a aventura dos andarilhos. Os andarilhos não andam por caminhos traçados. Eles fazem seus caminhos”.
[12] Ibidem, p.13.
[13] Ver, por exemplo, “O relógio” e “Alpendre no carnaval”, In:MELO NETO, João Cabral de. Antologia Poética, 2. ed., Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora - Sabiá, 1973, p68/73, e (principalmente) “O relógio”, na página 46 desta obra, entre outras tantas referências ao mesmo tema.         
[14] COSTA, Geraldo Jesuino da. Como abraços, Fortaleza: Imprece Editorial, 2014, p 29.
[15] No sentido explicitado por Manoel de Barros in: Poesia Sempre, op. cit., p.17: “O poeta é um narcisista. Cada verso é ele no espelho”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário