domingo, 20 de dezembro de 2015

CRÔNICA - O Inusitado em Amontada (PX)


 O inusitado em Amontada
Paulo Ximenes*


Um agrônomo do IDACE, encarregado da medição e avaliação de áreas rurais no interior do Estado do Ceará, campeava pelas matas fechadas do Município da Amontada, zona norte do Estado – outrora, São Bento da Amontada, no exercício de suas atribuições, quando se deparou com um fato bastante incomum – eu diria – praticamente impossível de ser assimilado por um cidadão instruído, ao comando de suas perfeitas faculdades mentais. Dessas coisas esquisitas, de que o mais ingênuo estudante duvidaria até às últimas consequências, ainda que o camponês, prejudicado pela falta de escolaridade, lhe imprimisse uma sustentação veemente.
  
O serviço era rústico sob vários aspectos. O imóvel, a par da sua topografia acidentada e da sua grande extensão, carecia ser totalmente percorrido para a perfeita avaliação do solo, da vegetação, das benfeitorias, das elevações e das tomadas dos vértices da poligonal fechada; e impetrava, justamente por isso, a participação de um acompanhante nativo que lhe conhecesse bem o terreno e os confinantes; que estivesse também disposto a fazer uma longa caminhada com aberturas de passagens à foice pela vegetação densa, com direito a alguns saltos arriscados sobre as reimosas cercas de arame. Tal qual um exercício militar abrangeria na austeridade da sua essência. 

Servia-lhe de guia um ancião franzino, homem determinado que não se rendia às fadigas do corpo e que tinha a fama de nunca ter corrido de um desaforo, ou fugido às instigações do dia a dia, por piores que fossem. Parecia um tanque de guerra.

Carregava uma espingarda, uma cabaça d’água e um facão que oscilava no cós da calça e que se arrastava pelo chão, tão grande que era; evidentemente, não lhe faltou uma foice bem afiada, o tempo todo grudada no seu punho direito.  

Já era tarde. Com a aproximação do pôr do sol, e na medida em que o velho caminhava, ele olhava cautelosamente para todos os lados; às vezes parava e apurava o ouvido, parecia segurar a espingarda com mais firmeza e querer conferir sons que só ele escutava e vinham do fundo do matagal.

Em certo trecho, ele fez uma parada mais demorada e pediu silêncio. Coisa estranhíssima que o agrônomo fingiu não perceber ou temer. Seria o velhote um louco? Um homem desses, no oco do mundo, armado até os dentes, com um complexo de perseguição... Ou queria apenas amedrontá-lo para que ele avaliasse o imóvel na cifra mais alta possível... Conjecturas e mais conjecturas se estiravam no seu pensar.

De repente, o idoso guia, na amplidão da sua esquisitice, andando rápido que nem um avestruz, decretou, como se as histórias de menino amarelo ou as cenas dos filmes de terror fizessem medo a um homem letrado: “Doutor, vamos apressar o passo! É perigoso ficar nessas matas a essas horas!”

Onde esse homem pensa que está? No Parque dos Dinossauros? Ao que o caminhar dos dois progredia, ridiculamente apressado, a casa já podia ser vista ao fundo, ainda longe, ao pé de um morro que a escuridão ameaçava engolir. As lamparinas davam um tênue realce às janelas. Tábuas de salvação. O agrônomo, enfim, resolveu fazer a pergunta retrancada que deu início a um diálogo pra lá de surreal:

– Perigoso? Por que?

– Tem um leão nessa mata. Eu mesmo vi!

– Um leão!!!

– Sim tem um leão aqui. Ele já comeu duas cabras minhas, um porco da vizinha e um garrote grande do compadre Joaquim. Só ficou o couro e o osso!

– Não foi uma onça que o senhor viu?

– Não! Foi um leão.

– Mas meu senhor! Nós estamos no Ceará. Só existe leão na África. O senhor está enganado!

– Tô não senhor! Eu já vi onça. Conheço ela.  Esse aqui foi um leão...

– Nova pausa na conversa. O silencio sentenciava nela uma arenga implícita; aliás, aquilo já parecia ter descambado para a chacota, no entender do técnico. O velho continuava com o dedo no gatilho, andando cada vez mais rápido, sempre olhando para os lados. Ó bípede acéfalo! Como esperar de ti uma manifestação de senso? – disparou o pensamento azedo do avaliador de terras, ofegante, vendo-se obrigado a caminhar rápido, quase tropeçando em uma grande pedra enviesada na vereda.

Chegaram, finalmente, à choupana e na hora do jantar ficou claro que a prosa, cheia de correções, não tinha, enfim, chateado o velho guia. Sua hospitalidade supera a tudo. Deve ter sido isso! Mas uma frase da dona da casa reascendeu o assunto – Não deixei o menino ir pra aula, “mode” o leão!  
 
Essa história de novo... E a mulher continuou firme, como fosse a coisa mais séria do mundo: “Ontem quase ninguém dormiu com o rugido da besta-fera!”

Na hora de dormir, o técnico que preferiu pôr uma pedra no assunto, resolveu dá o troco em alto estilo: pediu que sua rede fosse armada ali mesmo, nos caibros da varanda, quase ao relento e ao sabor da lua cheia, sob os protestos dos anfitriões, só para deixar bem claro que não existe felino africano ou gato comedor de bode nos sertões de São Bento da Amontada.

No dia seguinte, são e salvo, ele tomou seu café, despediu-se da família e partiu com um ar vitorioso. Com um longo e calado aperto de mão e um olhar sereno ele supôs ensinar ao velho guia que a falta de conhecimentos e as crendices andam juntas. As visagens e os causos de assombração, também!
Chegando muito cedo na cidade de Itapipoca, ao passar defronte a uma banca de revista, ficou estarrecido com uma manchete estampada num jornal: “Leão foge do circo e se embrenha nas matas de São Bento de Amontada!”

  

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