domingo, 27 de dezembro de 2015

ARTIGO - Empáfia Brasileira (VM)

EMPÁFIA BRASILEIRA
(Todos terminam da horizontal)
Vianney Mesquita*


Ouço falar muito mal da soberba dos grandes, porém esta não existiria sem a nossa vileza. (Gottfried August Büerger, YMolmerswend, 31.12.1747; Gottinger, 31.12.1794).



Consoante é de amplo conhecimento, empáfia, dicção sinônima de orgulho, soberba, jactância, vaidade e de alguns outros substantivos, é a vã arrogância, a insolência e presunção de uma pessoa que a conduz constantemente no caráter, ao assumir a noção – estúpida e incoerente – de que tem mais valor do que seus iguais, sob todos os prismas.

No Brasil, em alguns ambientes, principalmente nas cidades, hoje ocorrem, amiúde, condutores de tal infraqualidade, portando ideias sustidas no patrimônio de bens com representação monetária de usança e troca, recorrentemente trafegando influência, inclusive e, principalmente, nos Poderes do Estado, maiormente, sem dúvida, no âmbito do Executivo.

Tanto nos lugares grandes (conforme Fortaleza) como em comunidades menores, nas denominadas terras de muro baixo, têm curso ações dessas pessoas, quando pretendem sobrepujar, ilegítima e ilegalmente, os seus reais pares sociais na base do prestígio, vigor da “sabedoria” do indivíduo formado-deformado numa faculdade-dificuldade e com força financeira.

Sabem os estudiosos da formação social brasileira que esse mau e teimoso costume é afiliado a um fenômeno denominado patrimonialismo, sucedido no nosso País, nos tempos do Brasil-Colônia, certamente já trazido de Portugal, com nefastos desdobramentos pela Primeira República, prosseguindo, sobranceiro, pela Segunda, até trespassar, também altaneiro, quase incólume, o recente estádio evolutivo da sociedade nacional.

E eis que se instalou, quiçá por definitivo, no modus vivendi da nossa enorme Nação, decerto inesgotável em seus recursos de ordem econômica e cunho imaterial, ante o excesso de megafurtos e alcances financiais levados a efeito, principalmente, pelos seus afilhados, incapazes, porém, de esgotar miraculosamente seu imenso e lotado mealheiro econômico, semelhantemente a uma fazenda enorme de uberosas reses leiteiras, semelhantemente ao que diz o beiradeiro, “igual a uma vaca dos peitão.   

A pergunta “Sabe com quem está falando?” tem ainda solto curso na hora de o presunçoso demonstrar influência, em particular, para obter vantagens escusas, ao cortar desonestamente a fila dos direitos e aportar, pelo atalho mais curto, à pole-position de tão desregrada corrida.

Autores de renomeada internacional reportam-se ao fato e o patrimonialismo constituir um modo de ajuntamento social, com suporte no patrimônio havido com o complexo de produtos físicos e bens espirituais, desde que dotados de estimação comercial em valor de uso e de troca, inclusa a mais-valia marxista ou fração de trabalho não paga, e que são de propriedade de uma pessoa física ou jurídica, estatal ou particular. Lendo-se Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Holanda, Viana Moog, Nelson Werneck Sodré, e tantos outros, vai-se aportar a esta verdade.

A soberba é a jactância do tal, ufania patente do cara, tuxaua de todas as tribos, vaidade de dono da situação, a impostura do colhudo do pedaço, do 30 de fevereiro, do homem ou do filho do homem,  garanhão de todas as fêmeas, derradeira coca-cola do Saara e, por fim, do indivíduo que não pensa ser Deus, mas disso tem certeza.

A empáfia está radicada de modo inextirpável na sociedade nacional, assentada na ideia patrimonial, no ter como superior ao ser, de tal modo que ainda toma conta da realidade pátria, a despeito das conquistas recepcionadas pela Constituição de 1988, inserta nos poderes sugeridos por Montesquieu.

Anexim popular, de profundez imensa, dá conta da verdade chocante de que existem pessoas tão pobres, excessivamente indigentes, que só têm mesmo o dinheiro, nada mais..., enquanto outro aforismo de semelhante procedência traz à tona o fato inconteste de que mortalha não tem bolso, tampouco caixão possui gavetas.

A cultura popular, particularmente o cancioneiro, está cheia de alusões às bancas dessas pessoas picadas pelas moscas azuis, os dinheirudos analfabetos, desprovidos de outras faculdades e ensoberbecidos pela pecúnia, a qual lhes não aproveitará em nada, a não ser para deixar de herança aos outros; bem como os que amealharam algo de opulento, física e imaterialmente, enfim, todos os que hajam adquirido QUALQUER sortimento
pecuniário, achando de posar como distintos da plebe rude. Esta é, não custa refrescar a memória, referida por Miguel Gustavo, no Café Soçaite, gravado por Jorge Veiga, em 1955, tantas vezes por mim ouvido na “radiadora” do Cabo Maheiros, na Palmácia bucólica dos Cinquenta. (Enquanto, ó plebe rude, na cidade dormes, eu ando com Jacinto, que também de Thormes; Teresas e Dolores ...)

Ainda é a regra, mas há, venturosamente, exceções de ricos e intelectuais que, como camelos(*), passarão pelo fundo da agulha e adentrarão o Paraíso. Infelizmente, entretanto, em poucas cabeças assentará esse chapéu!

Lembro-me dos anos ’50, quando saiu uma modinha, de profundíssima filosofia, conquanto de muita simplicidade compositiva, contendo verdadeiro libelo contra os meramente endinheirados (ou simplesmente arranjados), os quais ostentam poderes não desfrutados. A poesia reproduzida à frente é capaz de derrubar qualquer distinto de sua pose de gente “rica” e “importante”.

Reporto-me à letra de Banca do Distinto, da autoria de Billy Blanco – nome artístico do arquiteto e compositor paraense (YBelém, 8.5.1924; Rio de Janeiro, 8.7.2011), William Blanco Abrunhosa Trindade – interpretada, salvante engano, pelo próprio Billy, por Dóris Monteiro e também Elis Regina, dirigida àquele que

Não fala com preto,/ Não dá mão a pobre /Não carrega embrulho. Pra que tanta pose, doutor?/ Pra que esse orgulho? A bruxa, que é cega, esbarra na gente/ E a vida estanca./ O enfarte lhe pega, doutor./ E acaba essa banca.

A vaidade é assim: põe o bobo no alto/ E retira a escada,/ mas fica por perto, esperando sentada/ Mais cedo ou mais tarde, ele acaba do chão./ Mais alto o coqueiro, maior é o tombo do coco.

Afinal, todo mundo é igual / Quando a vida termina/ Com terra em cima e na horizontal.

Acumulo ainda bem viva na lembrança uma composição registrada em disco por Jorge Veiga, em parceria com Badu – reportando-se ao fato de não adiantar ter dinheiro, nem tampouco ter cartaz/ É inútil seu esforço, pois na hora você vai./ Você vai, você vai pra onde eu vou (...) Na cidade dos pés juntos, todos nós somos iguais... Você vai (...).

Por fim, parando de mexer com os soberbos patrimonialistas, recorro de novo à coleção de modinhas nacionais, pedindo que eles atentem para mais uma lição, agora com o texto da música, de Ary Monteiro e Peter Pan, registrada em disco por Linda Batista. No fim, como distingue o leitor, os autores evocam a famosa “Prova dos Noves”, ao modo de uma pesquisa científica, para justificar a metodologia como caminho a fim de aportar a uma verdade insofismável, expressa na reflexão de um anônimo: A caminho do cemitério, encontraram-se dois amigos: “adeus”, disse o vivo. “Até logo” – o morto respondeu. Vamos à letra.

FILOSOFIA BARATA

Ninguém faz graça com a barriga vazia/ E passar fome nunca foi filosofia./ Vai trabalhar, vai trabalhar,/Primeiro comer, pra depois filosofar.
Nove dias tem a vida,/ Sendo três dias de amor, /três dias de mentira,/ E três dias de dor.

Depois da conta somada, vem a Morte e tira a prova: NOVES FORA, NADA!

Recorrei, pois, oh soberbos, à Prova dos Noves!

– Certamente, leitor, não descansará em você esta carapuça!

(*) Camelo é um termo náutico significativo de uma grossa corda. Está em Mateus, capitulo 19, verso 24: E lhes digo mais: É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus.


NOTA:

Duas grandezas distintas se observam na pessoa: a sua dimensão humana, que lhe é intrínseca, e a sua compleição socioeconômica, episódica e fugaz.

Nada impede que as duas grandezas se combinem, de modo que o individuo tenha alto valor moral e elevada estatura política, patrimonial ou social.

Contudo, infelizmente, tudo conspira para que a notoriedade pública e a fortuna econômica prejudiquem o bom caráter, gerando cupidez e empáfia, e que o espírito nobre obste a fama e a abastança.

Reginaldo Vasconcelos

Nenhum comentário:

Postar um comentário