A CRÔNICA APORTA
Reginaldo Vasconcelos*
Faz dias que não dou palavra. A alma muda, que só sabe
dizer deixando dito na palavra grafada. E a boca da alma nesta inanição do
verbo, emudecida pela espera e pela mágoa de não estar sendo ouvida. Mas a
crônica, a poesia, vêm como cai a chuva e com nasce a relva, ao beijo do acaso,
sem o voto e o arbítrio.
Hoje a crônica me visita com insistência, desde aquela
criança negra, muito negra e muito alegre, muito rara nesta terra de mestiços
convictos, com uns pingentes de ouro nas orelhas e um sorriso de pobreza feliz,
que pela mão da avó nos estende a sua mãozinha.
Depois, o vendedor de camarões, que barganha comigo, almoça
conosco e confidencia. Revela enfim nascendo de novo não vende camarões: “Não,
eu seria um cantor de rádio”, assevera. Limpa as mãos, imagina um palco, fasta
do “público”, e canta um pouco assustando o meu cachorro. Fora calouro no
passado, e o passado é presente no brilho de seus olhos. Despede-se e vai. A
crônica fica.
Mais tarde, no recesso de uma sauna, o refúgio de mim. Mas
aí, em mim o refúgio de um amigo, que toca a me falar das mágoas. Tem uma só
mulher, mas sonha milhões. Gordo, paixão que não sara por uma primeira
namorada, acorda em sobressalto de um sonho bêbado, procurando na esposa a
fêmea etérea, de pele fresca e cabelo perfumado. Diz que não tem tido sorte na
vida; desacredito um pouco; miúdo, compadeço-me. A crônica aflora.
De noite, um amigo-irmão e eu traficamos confidências que a
cerveja patrocina. Nas lentes de seus óculos há uma constelação de brilhos,
quais estrelas guias na navegação da vida. A crônica aporta.
Nenhum comentário:
Postar um comentário