segunda-feira, 9 de março de 2020

CRÔNICA - Alma de Gato (HE)


ALMA DE GATO
Humberto Ellery


Este fato que irei narrar, embora um tanto inverossímil, é absolutamente verdadeiro.

Por volta de 1968/69 eu era Diretor Comercial da Rádio Dragão do Mar, e o querido amigo Peixoto de Alencar era o mais respeitado locutor do rádio cearense. Era “a voz que quando fala o Ceará escuta”. O programa político, conduzido por ele, ia ao ar na hora do almoço, quando ele narrava os acontecimentos políticos, e lia com aquele seu vozeirão inimitável o editorial político. Sua audiência era soberana naquele horário.

Diariamente, quando eu estava saindo para almoçar, ele estava chegando para fazer seu programa. Eram encontros rápidos, na porta da rádio, onde sempre trocávamos um rápido aperto de mãos e um “Oi, tudo bem?” e “dois dedinhos de prosa”.

A rádio ficava na esquina da Av. Estados Unidos (hoje Virgílio Távora) com a Av. Antônio Sales, onde hoje estão dois enormes prédios residenciais. Eu já estava saindo para almoçar quando vi o Peixotão entrando no estacionamento em frente à rádio e encaminhando seu fusca vermelho rumo à sombra de um frondoso cajueiro. Parei para esperar por aquele encontro tão fraterno e simpático de todos os dias.

Inopinadamente o Peixotão freou o carro, desceu apressadamente, sem sequer fechar a porta, e correu em minha direção perguntado: “Você ouviu? Você ouviu?”. Sem entender nada, balbuciei: “Ouvi o quê, Peixoto”, afobadamente ele disse: “O gato, a alma do gato, ele miou” – e me puxou pela mão para a proximidade do carro, sinalizando para que eu ouvisse um miado que só ele ouvira.

Em seguida, ainda muito tenso, ele me contou: “Anteontem à noite eu matei um gato atropelado, mas não tive culpa, ainda tentei desviar, mas não deu. Eu ouvi nitidamente o barulho do corpo do bichinho batendo no soalho do carro, foi horrível. Eu, que não mato nem barata, matei um gato”.

“E eu adoro gatos. Parei o carro e voltei a pé, no escuro para tentar salvá-lo, levá-lo a uma clínica veterinária, mas não achei nada, nem marcas de sangue no chão. Minhas preocupações começaram ali. Que gato estranho era aquele, que é atropelado e não tem cadáver?” Era uma alma de gato.

Eu, então, tentei colocar alguma lógica na história dizendo: “Peixoto, se fosse uma alma de gato não teria feito barulho no soalho do carro, pois alma não tem osso”. Mas ele estava convencido de que aquela alma de gato viera para lhe assombrar.

Em seguida contou que mandara lavar o carro, inclusive o motor, vistoriou todo o carro e nem sinal de gato. No entanto de vez em quando ele miava como se estivesse dentro do carro o que o deixava assombrado, e isso já entrava no terceiro dia. Para sossegá-lo recomendei que fosse fazer seu programa, que já estava na hora de ir ao ar, enquanto eu tentaria resolver o mistério.

Mandei chamarem o Mincharia, que era o motorista/mecânico da rádio, e pedi que ele examinasse o carro e tentasse descobrir o tal gato, que nessa hora miou nitidamente, eu ouvi, o Mincharia também ouviu, e disse : “Já sei onde está o danado deste gato”. Foi buscar suas ferramentas e desmontou aquela estrutura que protege a ventoinha do motor do fusca. E lá estava o pobre gato, já quase morto, encolhido num espaço mínimo entre a ventoinha e a lataria do motor, para onde fora sugado durante o atropelamento.

Desfeito o mistério da alma do gato, durante muito tempo serviu para animar nossas brincadeiras com o meu saudoso amigo José Olavo Peixoto (o “de Alencar” ele acrescentou depois).


COMENTÁRIO

Elleryzando um pouco, o médium vidente Almerindo Reis me contou que certa manhã tentou pegar o seu gato que lhe passava sobre os pés, e então percebeu que era apenas o seu espectro. Não era o animal em carne e osso. Ficou meditativo. Na tarde daquele dia o bichano morreu atropelado.

Elleryzando mais, certa noite eu passava por um beco pouco iluminado que dá acesso à Avenida Beira-Mar, exatamente onde dois rapazes mataram um homem, que foram julgados pelo Tribunal do Júri, em sessão em que eu funcionara... e eles foram absolvidos. 

Eu comentava o fato com a família quando o meu carro atropelou uma pessoa. O barulho foi grande, a camionete estremeceu, o povo que estava nos bares acorreu para ver o acontecido. Não havia ferido, não havia cadáver, não havia amassadura, não havia nada. Verifiquei que os relógios marcavam meia-noite, e, depois, que naquela data o crime completava um ano, exatamente.

Reginaldo Vasconcelos    


Um comentário:

  1. Meu pai e suas histórias... artigo gostoso de lê! De onde ele estiver, estará dando boas risadas..

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