ALMA DE GATO
Humberto Ellery
Este fato que irei narrar, embora um tanto inverossímil, é
absolutamente verdadeiro.
Por volta de 1968/69 eu era Diretor Comercial da Rádio Dragão do
Mar, e o querido amigo Peixoto de Alencar era o mais respeitado locutor do
rádio cearense. Era “a voz que quando fala o Ceará escuta”. O programa
político, conduzido por ele, ia ao ar na hora do almoço, quando ele narrava os
acontecimentos políticos, e lia com aquele seu vozeirão inimitável o editorial
político. Sua audiência era soberana naquele horário.
Diariamente, quando eu estava saindo para almoçar, ele estava
chegando para fazer seu programa. Eram encontros rápidos, na porta da rádio,
onde sempre trocávamos um rápido aperto de mãos e um “Oi, tudo bem?” e “dois
dedinhos de prosa”.
A rádio ficava na esquina da Av. Estados Unidos (hoje Virgílio
Távora) com a Av. Antônio Sales, onde hoje estão dois enormes prédios
residenciais. Eu já estava saindo para almoçar quando vi o Peixotão entrando no
estacionamento em frente à rádio e encaminhando seu fusca vermelho rumo à
sombra de um frondoso cajueiro. Parei para esperar por aquele encontro tão
fraterno e simpático de todos os dias.
Inopinadamente o Peixotão freou o carro, desceu apressadamente, sem
sequer fechar a porta, e correu em minha direção perguntado: “Você ouviu? Você
ouviu?”. Sem entender nada, balbuciei: “Ouvi o quê, Peixoto”, afobadamente ele
disse: “O gato, a alma do gato, ele miou” – e me puxou pela mão para a
proximidade do carro, sinalizando para que eu ouvisse um miado que só ele
ouvira.
Em seguida, ainda muito tenso, ele me contou: “Anteontem à noite eu
matei um gato atropelado, mas não tive culpa, ainda tentei desviar, mas não
deu. Eu ouvi nitidamente o barulho do corpo do bichinho batendo no soalho do
carro, foi horrível. Eu, que não mato nem barata, matei um gato”.
“E eu adoro gatos. Parei o carro e voltei a pé, no escuro para
tentar salvá-lo, levá-lo a uma clínica veterinária, mas não achei nada, nem
marcas de sangue no chão. Minhas preocupações começaram ali. Que gato estranho
era aquele, que é atropelado e não tem cadáver?” Era uma alma de gato.
Eu, então, tentei colocar alguma lógica na história dizendo: “Peixoto,
se fosse uma alma de gato não teria feito barulho no soalho do carro, pois alma
não tem osso”. Mas ele estava convencido de que aquela alma de gato viera para
lhe assombrar.
Em seguida contou que mandara lavar o carro, inclusive o motor,
vistoriou todo o carro e nem sinal de gato. No entanto de vez em quando ele
miava como se estivesse dentro do carro o que o deixava assombrado, e isso já
entrava no terceiro dia. Para sossegá-lo recomendei que fosse fazer seu
programa, que já estava na hora de ir ao ar, enquanto eu tentaria resolver o
mistério.
Mandei chamarem o Mincharia, que era o motorista/mecânico da rádio,
e pedi que ele examinasse o carro e tentasse descobrir o tal gato, que nessa
hora miou nitidamente, eu ouvi, o Mincharia também ouviu, e disse : “Já sei
onde está o danado deste gato”. Foi buscar suas ferramentas e desmontou aquela
estrutura que protege a ventoinha do motor do fusca. E lá estava o pobre gato,
já quase morto, encolhido num espaço mínimo entre a ventoinha e a lataria do
motor, para onde fora sugado durante o atropelamento.
Desfeito o mistério da alma do gato, durante muito tempo serviu
para animar nossas brincadeiras com o meu saudoso amigo José Olavo Peixoto (o “de
Alencar” ele acrescentou depois).
COMENTÁRIO
Elleryzando um pouco, o médium vidente Almerindo Reis me contou que certa manhã tentou pegar o seu gato que lhe passava sobre os pés, e então percebeu que era apenas o seu espectro. Não era o animal em carne e osso. Ficou meditativo. Na tarde daquele dia o bichano morreu atropelado.
Elleryzando mais, certa noite eu passava por um beco pouco iluminado que dá acesso à Avenida Beira-Mar, exatamente onde dois rapazes mataram um homem, que foram julgados pelo Tribunal do Júri, em sessão em que eu funcionara... e eles foram absolvidos.
Eu comentava o fato com a família quando o meu carro atropelou uma pessoa. O barulho foi grande, a camionete estremeceu, o povo que estava nos bares acorreu para ver o acontecido. Não havia ferido, não havia cadáver, não havia amassadura, não havia nada. Verifiquei que os relógios marcavam meia-noite, e, depois, que naquela data o crime completava um ano, exatamente.
Reginaldo Vasconcelos
Meu pai e suas histórias... artigo gostoso de lê! De onde ele estiver, estará dando boas risadas..
ResponderExcluir