sábado, 4 de junho de 2016

CRÔNICA - A Nossa Fortaleza (TL)

A NOSSA FORTALEZA
Totonho Laprovítera*



Sou nascido e criado em Fortaleza. Conheço a minha cidade desde quando ela tinha uns 600 mil habitantes e todos se reconheciam. Quando menino, brinquei muito na rua. Jogava bola, soltava arraia, passeava de bicicleta e circulava livremente por onde bem entendesse. Medo, só o de mordida de cachorro e olhe lá.

Andava de ônibus sozinho, comprava picolé fiado do velho doceiro Tapioca e atentava aos gritos de “Vai doce americano!” do negão que anunciava as coloridas (verde, rosa e branco) guloseimas. 

Menino véi, quantas vezes fui sozinho ao Centro da cidade cortar o cabelo com o Seu Chicó, assistir filmes nos cines São Luiz e Diogo, merendar na Loja de Variedades, Lobrás, Miscelânea e Top's, comprar jornal do Rio na banca do Bodinho, do Paulinho, e os lia, ainda, nos bancos de ferro rebuscado, com alinhadas réguas de madeira, da Praça do Ferreira.

Na bodega do Milson, na Aldeota, perto da minha casa, nem conto as vezes que fui comprar chiclete, bombom ou tomar refrigerante.

Lembro demais do meu pai deixar o carro aberto, quer fosse estacionado na rua de casa ou perto do seu consultório, na Barão do Rio Branco com Liberato Barroso, para não esquentar muito.

Já adolescente, com a precoce turma de amigos, jogava sinuca no Campo do América e, de quebra, tomava umas amargas e geladas cervejas. Comprava cigarro, muitas vezes a retalho, e os guardava na meia para esconder de algum filão. Na época, era bonito fumar e beber.

Quando das tertúlias, eu voltava a pé pra casa, serenamente, pelo meio da rua. Ia dançar no Patinação e nas festas em quase todos os clubes suburbanos da cidade. Ia às barracas da Praia do Futuro e aos cabarés da Rua Dragão do Mar e cercanias. Cansava de encerrar as puxadas noitadas no bar Sereia, do Deó, onde se tomava um excelente caldo de peixe.

Já na faculdade, eu frequentava vários bares da Gentilândia e comprava fiado e na palavra os livros do Seu Rodriguez, um livreiro espanhol merecedor de homenagem dos antigos estudantes de arquitetura da UFC.

Nesse tempo, a tranquilidade era tanta, chega, certa vez, depois de uma festa no início do Obá-Obá, lá pelas bandas então longínquas da Unifor, quando eu ia embora, o guardador de carro me gritou: “Ei, sua carteira tá em cima da capota do carro!” Em gesto de agradecimento, fui gratificá-lo e ele me disse: “Precisa não, você já me deu gorjeta”.

Até casar, eu morei na casa da Rua Tibúrcio Cavalcante, no quieto Bairro Aldeota, quando se ouvia o vendedor de carne, montado em seu cavalo, bater na caixa de madeira e anunciar: “Carne e figo!”. Também morei no duplex da Avenida Desembargador Moreira e no apartamento da esquina das ruas Silva Jataí com Visconde de Mauá, no Bairro Meireles, de onde se ouvia o apito dos navios e o brado dos pescadores de “Vai peixe fresco!”.

Pois é, sem ou com saudosismo, eu tenho a certeza de que Fortaleza ainda vai voltar a ser romântica, saudável e bem-aventurada. A sua inocência, perdida pelas patologias das cidades grandes, se Deus quiser, vai ser suprida pela maturidade de quem já viveu o bom e o ruim. Muitas coisas são demasiadamente doídas, eu sei, mas, se inevitáveis, que nos sirvam de lição para amadurecermos a ideia de que o valor da vida está na sua boa qualidade. Afinal de contas, a gente veio ao mundo para ser feliz!




COMENTÁRIO:

Estreia com o pé direito em nosso Blog o confrade Totonho Laprovitera, com essa bela crônica saudosista, que revela o grande memorialista que ele será quando quiser enfrentar obra de fôlego nesse gênero, a exemplo do nosso Membro Titular Emérito Augusto Borges, e o nosso Honorário Veterano Narcélio Limaverde.

E ousa aplicar o cearensês livre de aspas, como na expressão “menino véi”, e dos regionalismos “bodega” e “turma”. Aliás, “turma” já era a forma elegante do termo “negada”, ainda mais alencarino, ambos os usos substituídos hoje pelo carioquismo “galera”, relativo às galerias do Estádio Maracanã, que a TV disseminou no Brasil inteiro.

E Totonho não se peja de aplicar a preposição coloquial “chega”, que eu só vira antes nas doçuras frasais de Lins do Rego, como no exemplo do Eurélio, em Banguê: “E a peia no lombo, chega cantava de longe”.

Conheci quase todos os personagens e referenciais de época a que Totonho se reporta – e principalmente os pregões que ele relembra – e que não voltam mais, como se queixa em relação a Lisboa aquele fado português.

Reginaldo Vasconcelos


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