domingo, 6 de março de 2016

CRÔNICA - Fiscal de Partido (VM)


FISCAL DE PARTIDO
Vianney Mesquita*
                                                                  

Todos os partidos políticos morrem estrangulados pelas suas mentiras. (JOHN ARBUTHNOT. Intelectual escocês. Y29 de abril de 1637- V24 de fevereiro de 1735).                                                                                                                                                                    
Escoava o segundo dos ’60, dois anos antes de ser admitida, a ponta de botas, a “gloriosacivil-militar (ferida em 31.03.1964), tendo por locus de referência dessa estória a Sede de Palmácia, meu lugar de nascimento, cuja instalação festiva ocorreu no dia 7 de setembro de 1957, após a edição da Lei número 3.779, de 08.08.1957, elevando ao estatuto de Município o então Distrito de Maranguape, sancionada pelo governador Paulo Sarasate Ferreira Lopes.  

Era 3 de outubro de 1962 e o Presidente da Seção Eleitoral (Terceira Zona), já às sete da manhã, adentrava o prédio do Grupo Escolar Ildefonso Campos, aberto com chave conduzida por ele próprio, no bairro de Vila Campos, a fim de preparar o local com vistas a receber os eleitores para escolha do dirigente executivo – segundo da sua história – à guisa de rendição ao mandato de Atanásio Perdigão Sampaio, detentor, até então, do múnus de  Prefeito.

A autoridade maior da dita unidade receptora de votos era o Sr. Vicente Pinto de Mesquita (15.10.1913 – 11.11.1993), nomeado pelo juiz competente, o qual, embora não mais residisse no Lugar das Palmeiras – pois se transferira com sua enorme família, para Fortaleza, no dia 4 se agosto de 1960 – ali deitava ainda raízes culturais, conservando, pois, com essa Terra os mais estreitos vínculos, notadamente as relações de teor familial e de cordialidade, do que jamais se distanciou.

Conquanto haja mudado de residência para outra cidade, a permuta não representou, no âmbito dos dispositivos legais então vigentes, a obrigação de transferir o domicílio eleitoral para Fortaleza, de sorte que “Seu” Mesquita permaneceu adido ao locus palmaciano referente aos pleitos eletivos e, sempre, era designado a presidir as sessões de uma das seções receptoras dos sufrágios, até enquanto foi possível, tanto sob o prisma de sua saúde corporal, quanto no que concerne às supervenientes modificações operadas no corpo legislativo, em virtude das amplitudes naturais  sucedidas na prossecução da história.

Então, fechado o parêntese explicativo da circunscrição desta narrativa, eis que, quando “Seu” Mesquita abriu as portas, adentrou a Senhora Aurenívea Silveira Luz (vizinha da minha avó – Maria Amélia Leitão Campos), esposa do Sr. Luís Coelho Luz, então candidato â Câmara Municipal de Palmácia, pela legenda da União Democrática Nacional – UDN, segunda legislatura, a se iniciar em 1962. (Postulante a edil fracassado, obteve oito votos, embora haja dito que se elegeria só com as promessas dos seus compadres).

– Bom dia, “Seu” Mesquita.

– Olá, Dona Nívea, tudo bem?

– “Seu” Mesquita: sou fiscal de partido ...

– Certo, Dona Nívea, mas agora é que são sete horas. Vou ajeitar aqui as coisas, para quando o relógio marcar oito, exatamente, quando chegarem o secretário e os mesários, começar tudo em ordem, iniciando-se a distribuição das senhas.  Espere até lá, por favor.

Dona Nívea sentou-se e, de cinco em cinco minutos (considerando o leitor a inflação dos tempos, deverá conceder as devidas diferenças do autor da narração), ela voltava a exprimir:

– “Seu” Mesquita, sou fiscal de partido.

– Certo! A senhora já me disse mais de uma vez, porém a sessão desta Seção Eleitoral só começa às oito horas. Nesse momento eu a chamo.

Duas ou três vezes, ainda, ela disse ser “fiscal de partido”, mas as oito em ponto, em “hora de relógio grande”, como se dizia, o meu pai, presidente da Seção exprimiu:

– Dona Nívea, já são oito horas e a senhora pode entrar; o secretário já vai distribuir as senhas ao eleitor que for chegando. Então, se sente aí e não saia de jeito nenhum – pois, se lembre, a senhora é “fiscal de partido”!

Aqui solicito ao leitor nova pausa para dizer que, no interiorzão do Brasil, as pessoas se deitavam cedo da noite; em Palmácia, principalmente, porque, sem a televisão de hoje, a luz dos dínamos-motores do “Seu” Atanásio, prefeito sainte, empresário fabricante da cachaça Palmacinha, se apagavam as nove (21h). Antes, porém, eram dados dois sinais, às 8h45min e 8h55min, a fim de a família armar a rede e acender a lamparina, esta, quase sempre, ali fabricada pelo conhecido flandeiro “Seu” Mechico, o único que trabalhava na Cidade.

De tal modo, também, o desjejum ocorria das quatro às cinco horas da manhã, para só ser servido o almoço, nas mais das vezes, sem a precedência da cearense merenda, de 10h30min – momento em que alguém saía com a comida dos trabalhadores para deixar no roçado – às 11h, o mais tardar. Eu mesmo fui muitas vezes deixar esse almoço. 

Então, por volta das dez da manhã, a “Bernalda” (no meu tempo de menino, sob alguma razão para a qual não atino, sinônimo de fome) já aperreava o estômago da Fiscal de Partido, a qual, ao sentir o forte odor dos festins opulentos, ali perto preparados pelos áulicos, tanto dos candidatos da situação como dos opósitos – no caso em tela, Francisco Damasceno Filho (PSP) e Adauto Sampaio de Andrade – UDN – este derrotado pela segunda vez – se mexia na cadeira, levantava-se, olhava lá fora, isso por vários minutos.

Foi, então, que decidiu ir até “Seu” Mesquita e lhe falar em cochicho:

– Presidente, eu vou até lá em casa “pegar” uma merendinha e volto imediatamente, certo?

De pronto, o Presidente, cum grano salis, (i.é., com uma pitada de sal, como gracejo), respondeu:

– ABSOLUTAMENTE NÃO! A senhora é “fiscal de partido” e só pode sair às cinco da tarde, quando findar o expediente!

Nem concedendo tempo de ela se apavorar, meu pai ajuntou:

– Pode ir, Dona Nívea, na hora em que quiser. E não é mais necessário voltar, pois bem já fez a sua parte.

Naquele tempo, a legislação eleitoral permitia este tipo de liberdade dos postulantes. Então, logo terminada a votação, até depois das cinco, os eleitores comprometidos iam até o local do banquete – em geral, a residência dos candidatos – para se refestelar com carnes de bois, porcos, bodes, carneiros, galinhas, patos (assados, cozidos, fritos) e depois se encaminhavam para casa, “lépidos e fagueiros”, a pregustar os rega-bofes do pleito mais próximo, uma vez que, para a maioria, aquela representava raríssima oportunidade.

O tempora! O mores!

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