RÉQUIEM URBANÍSTICO
Reginaldo Vasconcelos*
Corriam os anos setenta em seus albores. Mil novecentos e setenta e
um, precisamente.
Todos eram vivos e jovens. Menos o Bebeto, o tio mais novo, que por
volta dos trinta iria morrer de repente no réveillon daquele ano. Com ele eu
encetara o projeto de instalar entre os muros daquele terreno na Av. Rui Barbosa, sob seus cajueiros e mangueiras, uma
escola de adestramento de cães, atividade que eu e ele dominávamos, e que seria
pioneira no Estado.
Na principal música de carnaval que embalava o período Sérgio Sampaio falava de um
melancólico pierrô desapaixonado, perseguido pelas patrulhas ideológicas
culturais, por não se ter engajado na luta da esquerda contra o regime militar.
“Há quem diga que eu não sei de nada / que
eu não sou de nada / que eu fugi da briga / que morri de medo quando o pau
quebrou...”. A vida pela frente, eu já sabia, seria uma corrida de obstáculos, que
não me intimidava. “Eu quero é botar / Meu
bloco na rua / Brincar / Botar pra gemer.
Mas dos rádios e fonolas mais
comportados se ouvia o disco anual de um catolicíssimo Roberto, que chamava
para si a atenção de Jesus Cristo, insistindo no refrão “eu estou aqui!”. O tio
que ia morrer comprara o LP naquele natal para presentear alguém na família, e
logo em seguida foi chamado para o Éden.
Eu estava aí meio menino nesta calçada, esperando um ônibus e projetando
a ideia de adestrar cães, que não se concretizou porque o velho ranzinza dono
do espaço resistia em cedê-lo para a exótica atividade, respondendo aos meus
apelos que “de cachorrada andava cheio”. E as gestões não insistiram mais, e o
plano não prosperou, porque o sócio no negócio desertou para o infinito.
Corte no tempo, sete anos depois, o empresário Bosco Coelho de repente transforma
esse bosque urbano de meio quarteirão na mais agradável casa de pasto da cidade,
a churrascaria Parque Recreio, com o seu pequeno zoológico, um formigueiro de
garçons, e a melhor carne zebu do universo, assada ao sal grosso, no espeto, sobre a brasa.
Anos à frente eu a prestigiaria com frequência – com os amigos, com
as namoradas, com a família, com o grupo de moças que eu fotografara para a
minha página no jornal, marcando com um diagrama de lembranças específicas cada
praça a céu aberto, cada palhoça, cada mesa do gigante restaurante.
Muitos mais anos à frente, já sem os bichos, que o Ibama confiscou –
mas ainda com muito glamour, já sob a administração do ex-garçom que o arrendou
e enriqueceu, fizemos ali as primeiras reuniões para a fundação da ACLJ, preparatórias
para a instalação da confraria. E mesmo depois, era ali o nosso laboratório de
intenções.
Agora a churrascaria fechou, e o terreno voltou ao seu estado
original. Suas árvores estão novamente ameaçadas de extermínio, e tombarão juntamente
com tantas memórias vivas que construímos embaixo delas.
“E a lua verá desconfiada / A Loura do Sol com mais um supermercado”
– parafraseando o compositor Ednardo, na canção em que ele chora as inexoráveis
metamorfoses urbanas, que trucidam o passado da cidade e soterram as melhores lembranças
de seu povo.
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