quarta-feira, 6 de março de 2019

CRÔNICA - Não Brinco Mais Carnaval (RV)


NÃO-NÃO-NÃO-NÃO,
NÃO BRINCO MAIS CARNAVAL
Reginaldo Vasconcelos*








“Não-não-não-não / Não brinco mais carnaval / Cansei de desmaiar no salão” (Não quero mais andar na contramão – Música de Raul Seixas)

Faz anos que não brinco carnaval. Fui um folião de raça durante a paz cidadã do Regime Militar. Cantava a jardineira, ia além do quinto copo, colar de havaiano e quepe de marinheiro, bloco de clube e corso de automóveis.

Folião de raça / bebendo o quinto copo de cachaça (...) Cantando A jardineira, oi / A jardineira”. (Camisa Amarela – Música de Ary Barroso).

Meu foco na vida civil era conquistar trabalho, emprego, renda, para garantir e manter as conquistas amorosas. Um carro, algum trocado, talão de cheques para pré-datar, cada noite de sábado era uma criança.

“Ó jardineira porque estás tão triste / Mas o que foi que te aconteceu / Foi a camélia que caiu do galho / Deu dois suspiros e depois morreu”  (Música de Benedito Lacerda-Humberto Porto)

Depois, já de vivenda preenchida com moça bonita e fraldas no varal, o carnaval era sagrado. Não me interessava a conjuntura internacional nem a política de Brasília. Era abrir um negócio, prestar concurso, cursar a faculdade, e, uma vez por ano, declarar armistício na luta pela vida, para ceder à irreverência, fazer o mela-mela, beijar as namoradas.

Ei, você aí! / Me dá um dinheiro aí! / Me dá um dinheiro aí! (Música de Moacir Franco)

A infância – na família, no colégio e nas ruas – fora um simulacro cruel do que seriam as lutas concorrenciais da vida adulta – um desafio de sobrevivência moral na forja do caráter, no mundo rigoroso dos mais velhos e no universo hostil da molecagem. Passada a puberdade, na mocidade tudo era superação e valentia juvenil.

“Mamãe eu quero / Mamãe eu quero / Mamãe eu quero mamar” (Música de Jararaca e Vicente Paiva)

A Rússia vivia o seu apogeu no socialismo real, em busca do eldorado comunista – quimérico e utópico; Fidel Castro reinava em sua ilha; judeus e árabes guerreavam por seis dias, se odiando por milênios.

“Mamãe, eu vou / Ser soldado de Israel / Não tem água no cantil / Mas tem mulher no quartel” (Música de Luiz Antônio).

O “grande irmão do norte” alternava presidentes pela via democrática, e mandava a sua juventude matar e morrer em suas guerras pelo mundo. E eu com isso?

“Era um garoto / que como eu / amava Beatles e Rolling Stones / (...) Mandado foi ao Vietnã / Lutar com vietcongs”. (C'era un ragazzo che come me amava i Beatles e i Rolling Stones, Música de Franco Migliacci e Mauro Lusini).

No Brasil, os políticos, na sua cachorrada de sempre, a se aliarem e se traírem, enquanto eu, sem vocação para herói ou mártir, só queria subir na vida honestamente, e, uma vez por ano, brincar o carnaval. Durante o ano todo o meu nome era trabalho, e em fevereiro o meu lema era “viva o Zé Pereira!”.

“Viva o Zé Pereira / Que a ninguém faz mal / Viva a pagodeira / Nos dias de Carnaval” (Da quadrilha francesa Les Pompiers de Nanterre, de Philibert)

Até que a Administração Pública do País foi acometida por uma doença autoimune de cunho ideológico, mas de prática anarquista e iconoclasta, em que a degradação moral crônica, até na vida financeira nacional, subjacente à sociedade desde a colonização, se tornou aguda e sistêmica.

“Olha a cabeleira do Zezé / Será que ele é? / Será que ele é?” (Música de João Roberto Kelli e Roberto Faissal)

Em nome da plena liberdade de mão única, a ditadura da “pós-verdade” se instalou, para obrigar a cidadania à naturalização do irreal, em prol do mais desvairado hedonismo, por meio de modernosas concepções disparatadas.

“O teu cabelo não nega mulata / Porque és mulata na cor / Mas como a cor não pega mulata / Mulata eu quero o teu amor”. (Música de Lamartine Babo)

A “inverdade desejada” pelo novo establishment vigora contra as mais legítimas posturas sociais e pulsões da alma humana, e até em flagrantes afrontas biológicas, fazendo exsurgirem presunções descabidas de direitos, implantando ainda uma rigorosa “pedagogia verbológica”.

“Se a polícia por isso me prender / Mas na última hora me soltar / Eu pego o saca saca saca rolha / Ninguém me agarra ninguém me agarra”. (As águas vão rolar - Música de Zé da Zilda)

Sobreveio ainda o jugo severo dos preceitos do “politicamente correto”, que proíbem os indivíduos de fazer ou não fazer, de gostar ou desgostar daquilo de que eventualmente gostem ou desgostem, censurando e criminalizando inclusive manifestações jocosas de carinho e a liberdade de expressão dos humoristas.

“Linda morena, morena / Morena que me faz penar / A lua cheia que tanto brilha / Não brilha tanto quanto o teu olhar”. (Música de Lamartine Babo)

Segundo a nova ordem, há que se apreciar forçosamente o azul e o amarelo, ou se calar a esse respeito. A sociedade dividida em grupos hipersensibilizados pela mídia, fazendo transbordarem os seus caprichos cavilosos para o látego da legislação e da Justiça.

Eu quero é botar meu bloco na rua / Brincar, botar pra gemer /  Eu quero é botar meu bloco na rua / Gingar, pra dar e vender”. (Música de Sérgio Sampaio)

Então, eu fiz o enterro de Momo em meu espírito, que não pode haver alegria genuína e organizada onde tudo é anarquicamente obrigatório ou proibido, vigorando o preconceito maior contra o preconceito menor, a desigualdade total contra a desigualdade normal, a injustiça mais grave contra a injustiça presumida.
“A gente se embala / Se embora se embola / Só para na porta da igreja / A gente se olha / Se beija se molha / De chuva, suor e cerveja”. (Música de Caetano Veloso)

É verdade que contra tudo isso as forças anabólicas da sociedade e a maioria do povo conseguiram ministrar à República um remédio radical, cujos efeitos colaterais quimioterápicos ainda começam a ser sofridos, sem que se tenha certeza de que consigam levar a uma convalescença segura o combalido paciente.

Eu vejo as pernas de louça / Da moça que passa e não posso pegar / Tô me guardando pra quando o carnaval chegar”. (Música de Chico Buarque de Holanda)

 Fernandão
O "Rei Fininho" da Embaixada da Cachaça, falecido em 2015

Enfim, se e quando o sol da autêntica liberdade voltar a brilhar no opalino céu da ordem e do progresso nacionais, exumarei o rei da alegria, lhe entregarei a chave da minha alma, e o reabilitarei na minha vida severina delongada.






COMENTÁRIO

Parabéns, caro amigo. Belíssima peça, essa crônica “Não Brinco Mais Carnaval”.

Geraldo Jesuino. 


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