segunda-feira, 18 de março de 2019

CRÔNICA - Curva Históriaca da Violência (RV)


CURVA HISTÓRICA
DA VIOLÊNCIA
Reginaldo Vasconcelos*



Quem morasse quatrocentos anos atrás no local onde moramos, seja no Montese ou na Aldeota, na Parquelândia  ou na Água Fria, enfim, em qualquer bairro da cidade em que vivemos, teria que ter armas em casa e cães em seus terreiros. Naquele tempo tudo era mato, de modo que era mister se prevenir contra índios e onças. Foi por causa desse binômio feroz que, de lá para cá, apareceu no Brasil-central o nosso único cão de guarda, o fila brasileiro, resultante do cruzamento de mastins importados pelos fazendeiros de Goiás. 

Não há nisso nenhuma fantasia. Não se trata de desenho-animado, nem de “História de Trancoso”. Havia, sim, índios e onças há bem pouco tempo por aqui, exatamente onde estamos agora, por incrível que pareça. Tempo longo para a vida de um homem; nestante para a civilização. Há papéis, obras de arte e edifícios, pelas cidades da Ásia e da Europa, que remontam àquela época e até a outras, muitos anos antes dela.


ANTANHO

Mas no século 17 nós ainda não tínhamos fazendeiros, nem cães de raça, neste então chamado “Siará Grande”. Talvez por isso mesmo ninguém morasse por aqui, além dos soldados holandeses, alguns dos quais ficaram sitiados pelos índios dentro do Forte Shoonenborch, comendo os próprios cavalos, até que pudessem entrar em seus navios e voltar para a Holanda.

Por mais dois ou três séculos não se podia ainda morar nos sertões, nem onde hoje é a Grande Fortaleza, sem estar prevenido contra feras e malfeitores em geral – depois dos índios, os cangaceiros, descendentes daqueles, miscigenados a netos de portugueses marginais e de ex-escravos negros.



OUTRORA


Ao longo do século 20 essa realidade transmudou-se. A cidade cresceu, passou a imperar a ordem pública, definiram-se as castas sociais do meio urbano. Então, quem tinha casa na rua ou sítio no arrabalde podia viver tranquilamente em seus domínios sem precisar de garrucha ou mosquetão, e sem ser essencial manter cães ferozes nos quintais.

O crime acontecia com freqüência no meio do povinho, nos mocambos, nas macumbas, nos cabarés, nos sambas periféricos, nas areias, nas cachaçadas dos pescadores, mas isso não exsudava para a parte nobre da cidade, e quase nunca alcançava a fidalguia das famílias de posse e de renome. A polícia era temida e respeitada, as pessoas simples tinham reverência aos homens cultos, ninguém atacava com violência o alheio patrimônio.

Os guardas noturnos apitavam pelas esquinas da cidade, para repelir ladrões pé-de-chinelo que viessem de um subúrbio qualquer subtrair alguma coisa, praticar um furto, forçar alguma porta, pular algum muro para assaltar um galinheiro. Meu velho pai precisou sair a pé na madrugada pelas ruas da cidade, no início dos 60, e levou na cinta o seu revólver. 

Havia cães vadios pelas ruas, e ele temia o eventual ataque de um hidrófobo raivoso que encontrasse – só por isso justificou o porte da arma. À luz do dia aparecia um descuidista, um romântico batedor de carteiras, um vigarista famélico, um bêbado chato, um maconheiro manso, nunca um bandido perigoso.

Mesmo assim, quando a polícia pegava um meliante qualquer, metia a peia, raspava-lhe a cabeça, mandava capinar por muitos meses na colônia penal do Amanari. Sei que era cruel, mas “o historiador não tem entranhas”. A violência contra a marginália protegia o cidadão, essa é a conclusão fática. Fatídica, se preferirem, mas necessária, porque os bens jurídicos se protegem de conformidade com a sua hierarquia, e a paz dos homens de bem tem muito maior valor moral e importância social que a integridade dos cretinos.


AGORA 


Hoje vivemos neste século 21 em Fortaleza cheios de apreensão e cercados de filas brasileiros. Lá fora o mundo é novamente tão perigoso e violento quanto a selva que havia nos idos da colonização, no tempo do Império. As onças e os índios sucumbiram à evolução da sociedade, os cangaceiros foram decapitados, mas o efeito  “Mad Max” se insinua, a improbidade se agiganta, o poder público se apequena, o grito da anarquia ecoa nas esquinas e a cidadania põe-se a agitar bandeiras brancas na direção dos energúmenos, como se aproveitasse alguma coisa ao passarinho pedir paz aos gaviões. 

O bandido é o inimigo sanguinário que não entende a linguagem humanitária, mas os ativistas beneméritos clamam que se lhe trate com doçura e se lhe concedam os mesmos direitos do homem bom. A sociedade, exultante pela paz, insiste em praticar a justiça dos puros com os injustos, em tolerar os intolerantes, em tratar com igualdade humana os moralmente desiguais. Faz passeatas, oferece a outra face à bofetada, mas o cutelo da contumácia é a resposta.

As verbas para as polícias são minguadas, reduzem-se os homens em armas, a truculência chapa-branca é denunciada e reprimida. Os políticos, que fazem as leis, vivem de votos, parte deles cortejando o grande capital, que financia as campanhas, outra parte afagando as massas torpes, que atropelam a ordem. Ficamos nós da classe média espremidos nas engrenagens do moinho.

Claro que existem os dramas sociais, mas esses sempre existiram e existirão. Tanto o homem quanto a fera indígenas tinham sobradas razões éticas para atacar o invasor do seu habitat natural; contudo, nem por isso prevaleceu a sua ação jus-naturalista contra a cidadania florescente, até porque, não fosse assim, não teriam prosperado a humanidade e seu engenho.

Já faz tempo, o belo sonho da igualdade plena se acabou. Foi honesta a tentativa de torná-lo real, mas fracassou inteiramente. Não existe a Canaã de leite e mel algures prometida, e a Utopia de Morus, por definição, é inexistente, está patente. O comunismo e a liberdade, como água e óleo, não se podem unir – hoje sabemos.

Enfim, já não há esperança de que a espécie humana inteira se humanize, mas, ao contrário, há a certeza de que a luta dos bons contra os maus seja perpétua, justificando as religiões e os tribunais. Urge, sim, que os apelos dos mais pobres sejam ouvidos, que se lhes deem moradia, saúde, educação, emprego, renda, oportunidades de progresso... 

Mas, enquanto isso, que os insubmissos sejam eficientemente contidos e os sociopatas, segregados. Que os que já moramos, trabalhamos duro e pagamos impostos tenhamos direito a segurança. Eis o que é mais urgente ainda, porque a dignidade legitimamente conquistada não macula, enquanto a pobreza não recomenda virtude, nem autoriza a delinquência.

Hoje estou na minha casa entre muralhas, e até recentemente nem mesmo uma frágil cerca de bambus a guarnecia. Ouço o rugido dos três cães que cismam no jardim, prontos para estraçalhar qualquer intruso, quando até bem pouco tempo atrás um somente pequinês dentro de casa velava o nosso sono. Se antes tinha um canivete na gaveta, agora é preciso manter ao alcance da mão o revólver, municiado, hábil e certeiro. 

Entretanto, que a qualquer momento a lei lhe bate à porta e o requisite, que arma de fogo é instrumento marginal que não serve ao cidadão, segundo se apregoa. E quem sabe também se confisquem os cães, ante a possibilidade de que os bichos possam eventualmente malferir algum menor infrator protegido pelo ECA, que decida invadir a minha casa para roubar o que tenho e seviciar minha família.       

Sei não... Na verdade nem precisava da lei. Gostaria eu mesmo de amansar os meus cachorros, demolir os muros e transformar a arma moderna em enfeite de parede, como fizemos com as antigas, no século passado. Mas não posso. Tenho que resistir. Vou esperar; quem sabe a barbárie seja cíclica. Se for assim, tomara que este século passe logo!





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