O RUBOR DO MACUNAÍMA
Rui Martinho
Rodrigues*
O
herói sem caráter ruborizou. A causa: as declarações de voto no juízo de
admissibilidade do impeachment. Parlamentares invocaram a família e Deus. O
pudico Macunaíma não se escandaliza quando candidatos, em época de eleição,
sendo ateus, invocam o Todo Poderoso e fazem proclamações de filiação religiosa
ou beijam criancinhas. Não percebe o paralelo? Ignora a demagogia dos seus
correligionários, inclusive em eleições recentes? Qual candidato ateu a
presidente não se fez passar por cristão ou simpatizante do cristianismo?
O
cinismo é internacional. Autores europeus invocam a Física, aludindo a teoria
relativista como à quântica, amparando o relativismo cognitivo, válvula de
escape das teorias contraditórias, em procedimento desmascarado por Bricmont e
Sokal em “Imposturas intelectuais”.
A
alusão aos filhos e outros parentes foi fator irritante para o Macunaíma pudico.
Motivo: o apreço pela família foi associado aos conservadores, satanizados no
Brasil; e por ser um recurso que pode sensibilizar as massas. Quem almeja
monopolizar a manipulação do povo odeia concorrente com aptidão demagógica
capaz de lhes fazer frente usando as mesmas armas. Isso vale também para as
religiões políticas. Não esqueçamos que o senhor Gilberto Carvalho disse ser
prioridade combater um certo grupo religioso.
Os
escandalizados agem por tática política, para influenciar o público; sob o efeito
da manipulação; motivados pelo sentimento de contrariedade com o voto pelo
impeachment, expressão de paixão e de interesses contrariados; ou choque com a
divergência, derivado da atitude dogmática herdado da tradição jesuítica da
contrarreforma, do positivismo e do materialismo histórico. Os primeiros pela
presunção da posse de verdades reveladas, os outros dois por acharem que
expressam “verdades científicas”.
O
dogmatismo também é um recurso de convencimento na prática do proselitismo
ideológico/religioso. A religiosidade em sentido eclesiástico, do jesuitismo,
teve continuidade, sob a aparência de ruptura, com o positivismo de Comte. Este,
mais uma vez sob a aparência de ruptura, teve continuidade no materialismo
histórico.
A
guerra entre as três tradições citadas não afasta a continuidade do dogmatismo,
embora amparado em argumentação distinta; somado a permanência da promessa
messiânica de “um mundo melhor”, paraíso celestial ou terrestre; a formação de
um só rebanho e só pastor, seja na Igreja seja no partido; o culto à
personalidade dos líderes; a imputação de torpeza aos que pensam diferente; e à
presunção de superioridade moral e intelectual.
Distinguem-se
dos liberais, para quem o homem se pertence, não pertencendo à Igreja ou ao
partido, nem à pátria e a família ou à classe social; cabendo a cada uma a
responsabilidade pelo próprio destino, sem uma reengenharia social e
antropológica para a produção de um “novo homem” (promessa messiânica). Os liberais são agnósticos, do ponto de vista político.
Daí a tolerância fundada no falibilismo de Locke, nas “Cartas sobre a
tolerância”, tese reforçada por Popper nos escritos sobre a validade
transitória do conhecimento.
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