sexta-feira, 2 de setembro de 2016

CRÔNICA - Canalhas! Canalhas! Canalhas! (RV)

CANALHAS! CANALHAS! CANALHAS!
Reginaldo Vasconcelos*


Ontem à tarde, do velho cemitério da Ordem Terceira de São João Del-Rei, ouviu-se “um heroico brado retumbante”: CANALHAS! CANALHAS! CANALHAS! “E o sol da moralidade em raios pálidos, fugiu do céu da Pátria nesse instante”. 

A quem será que apostrofava dessa vez Tancredo Neves, de onde repousa, no altaneiro solo pátrio? Não sei.

Não sei se dirigia essa baldão verbal ao supremo magistrado, que como guardião da Carta Magna presidia a Mesa do Senado, mas que se despiu dessa dignidade para se portar como mero interprete de um reles regimento, e a este breviário parajurídico submeter claríssimo artigo da Constituição Federal, por meio de uma camaleônica exegese.

É lógico que não teve Sua Excelência a intenção de proteger o partido que o conduziu ao Supremo Tribunal Federal, nem a Presidente com quem, como se sabe, manteve encontro secreto em Portugal para pedir melhor salário, segundo ele mesmo confessou ao ser flagrado. Claro que não foi isso o que ocorreu – mas, como se diz, não basta à mulher de César ser honesta. Ela precisa parecer honesta.

Ao invés de induzir o Plenário a aceitar o fatiamento do artigo constitucional, aterrorizando-o com a hipótese de que a questão fosse posteriormente revertida por seu próprio tribunal, em seu lugar eu rejeitaria de plano essa proposta absurda, em respeito ao teor literal do parágrafo único do artigo 52 de Estatuto da República, sem receio de ser repreendido um dia em qualquer instância jurídica do Universo.

“(…) limitando-se a condenação (…) à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis”.

Mas, pode ser que a invectiva espiritual de Tancredo Neves, que ouviram ontem do Córrego do Lenheiro as margens plácidas, se dirigisse também ao Presidente do Senado, o qual, com o beneplácito do Presidente da Sessão, quebrou o protocolo para interferir no julgamento.

Antecipou seu voto, brandindo o livro da Constituição em uma das mãos e negando falsamente que ela autorizasse a inabilitação da afastada Presidente, sinalizando aos seus sabujos que seguissem o seu comando.

Pessoalmente, eu não estranhei nem um pouco quando a gaiola de corvos da estrige grasnou a sua questão de ordem descabida, surpreendendo a todos, porque todo o País já estava acostumado às suas manobras cavilosas. Nem tive pasmo algum quando alguns deles, chorosos, da tribuna do Senado, pediram clemência ao Plenário.

Mas fiquei pasmo quando o Ministro Lewandowski a respondeu, já estando ciente de tudo e tendo a resposta exaustiva previamente preparada, metralhando a lógica com uma hermenêutica estapafúrdia. CANALHAS! CANALHAS! CANALHAS!.

Por trás da cena patética pairava o espectro medonho de Eduardo Cunha, pois se criava um precedente espúrio para beneficiá-lo, bem como a muitos outros políticos que rumam ao patíbulo federal. CANALHAS! CANALHAS! CANALHAS!

Consumada a tramoia, atendidos os apelos humildes em favor da sibila destronada, toda a malta do mal saiu imprecando e atirando, inclusive ela própria, açulando grupos de vadios a praticar vandalismo e a depredar o patrimônio alheio. CANALHAS! CANALHAS! CANALHAS!.



NOTA DO EDITOR:

1. O fatiamento do parágrafo único do artigo da Constituição, para permitir o escrutínio em separado das penas de perda do cargo e de inabilitação a cargo público pelos próximos oito anos, será questionado pelo STF, com grande chance de ser reformado e revertido. Dois dos mais antigos membros do Augusto Pretório já anteciparam o entendimento de que a decisão deve ser revertida, por flagrante inconstitucionalidade.

2. Ninguém se espante se o próprio Ministro Ricardo Lewandowiski, caso não se declare impedido para o julgamento, votar no sentido da reforma dessa decisão, pois ele mesmo ressalvou que não interferiria na decisão dos Senadores porque não estava ali como juiz, mas apenas como ordenador dos trabalhos. Isso já pode ter sido um “álibi” para não se comprometer.

3. A teratologia jurídica do fatiamento daquele comando constitucional já se verifica na literalidade peremptória da sua dicção, mais ainda pela assimetria estabelecida com o julgamento de Fernando Collor de Mello, cujo rito aplicado vinha sendo tomado como paradigma, e finalmente pelo vício formal do encaminhamento indevido feito pelo Presidente do Senado, durante o julgamento, o que reforçou a “narrativa do golpe”, porque quebrou a regularidade procedimental até então levada a cabo, funcionando como um prêmio de consolação aos pretensamente golpeados.

4. Há ainda os efeitos políticos nefastos, entrevistos no precedente aberto para beneficiar outros administradores públicos “ficha suja”, exatamente quando se faz um esforço legislativo contra a corrupção. Também na ruptura da base do novo Governo, entre o partido do Presidente, que deu respaldo à decisão controvertida, e os demais partidos aliados. E, por fim, a manutenção da Presidente afastada na vida pública, apta a liderar a severa oposição aos esforços governamentais pela restauração do País, que ela mesma já ameaça fazer, é um consectário indesejável.

5. O título da crônica refere a célebre fala de Tancredo Neves, quando o então senador se indignou com o colega Auro de Moura Andrade, que declarou vaga a presidência da República, com João Goulart ainda no Brasil, abrindo espaço para a ditadura militar de 1964: “canalha, canalha, canalha.”



COMENTÁRIOS:

Excelentes artigos sobre a melancólica realidade brasileira. O artigo CANALHAS, CANALHAS, CANALHAS” merece ser emoldurado e preservado para a história.

Cássio Borges


Bravo, Reginaldo! Oportuno, lúcido e bem escrito o seu artigo.

Luciano Maia





Faço coro com você, caro amigo Reginaldo, pois sua lucidez se lavra no melhor texto que li sobre essa nódoa que nos entristece.


Geraldo Jesuino



Parabéns pelo excelente artigo sobre a canalhice praticada no Senado, sob os auspícios dos presidentes do Senado e do STF. As interpretações históricas não permitirão que este tipo de traição aos cidadão brasileiros fique impune.

Luciara de Aragão 



Um comentário:

  1. Faço coro com você, caro amigo Reginaldo, pois sua lucidez se lavra no melhor texto que li sobre essa nódoa que nos entristece.

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