domingo, 18 de setembro de 2016

LITERATURA DE VIAGEM - Espiroás (VM)


ESPIROÁS*
Vianney Mesquita**


Percorrer terras e conhecer povos diversos torna os homens discretos. (MIGUEL DE CERVANTES SAAVEDRA).


A sobriedade e o comedimento, expressos à epígrafe no asserto do Romancista de Alcalá de Henares, ocorrem de ser, desde sua procedência, marcas da admirável personalidadedo intelectual e escritor oeirense (PI) Augusto Rocha, radicado no Ceará, um dos melhores narradores em texto que já tive a boa sorte de deparar, sobre ser figura de trato excepcional e caráter a toda prova, com quem qualquer pessoa se sentirá confortável se com ele entretecer amizade.

Nem por isso, contudo, ditos predicados deixam ainda mais de remanescer devidamente assentes no padrão de urbanidade deste viajor inveterado, cujas descrições transpostas para a literatura já conquistaram o leitor, maiormente aquele afeito a longas jornadas, praticante ou meramente aficionado de um misto dedesenfado e folgança, sem esquecer como seu apêndice o esgotamento, até adentrar o portal do sofrimento, que ele, logo depois, transmuda em deleitosa circunstância, como pretexto para nova expedição motociclística.

Os périplos perfeitos por Augusto Rocha e seus íntegros acompanhantes – exemplos paradigmáticos de Humanidade – são bem distintos dos dilatados passeios em transatlânticos favorecidos de cabinas luxuosas, em aviões modernos para estrato very importante person e comboios-bala, com câmaras ostentosas e afagos – recorrentemente, por demais pronunciados – de comissários e serviçais poliglotas, magnificamente retribuídos, mercê dos altos preços avençados no contrato da viagem.

Isto porque, embora suas motocicletas os conduzam com rapidez aonde intentam chegar, muita vez, é preciso – por exemplo e entre múltiplos estorvos ocorrentes num trajeto destes – “carregá-las”, nos momentos de cismas mecânicos, mesmo com os necessários e até exagerados cuidados por eles dispensados a essa maquinaria, no decurso inteiro de uma viagem cisandina, como a que o Escritor alencarino-piauiense exprime neste relato de insuperável fidelidade descritiva e primorosa qualidade estilística, fato que o conduz a um lugar de saliência, no Brasil, como distinto expositor do calibre literário da narração.

Penso consagrar respeito ao futuro consulente de um escrito, ao não fornecer nem sequer manchetes de seu enredo, narrar passagens ou extrair ilações (as quais podem não corresponder à vontade expressiva do escritor e até induzir ao logro aquele que o descodifica), porquanto, entendo, o leitor tenciona mesmo é conhecer in situ, sob o patrocínio direto do autor, suas compreensões a respeito dos eventos contados, sem a interferência de um tertiusgenus, o qual é passível de lhe surripiar a vontade de leitura.

Espiroá – cumpre-me exprimir – é o simples e muito bem pinçado título (e por aí já se denotam as luzes do produtor do livro), tirado de quando Augusto Rocha, ao retornar da comprida saga à Terra do Fogo, viu-se passando pela ponte sobre o primeiro Espiroá, ribeiro tributário do rio Ceará, aqui no Município de Caucaia, quase em Fortaleza, que, poeticamente, “ainda repousava [...] seco e sem vida. Uma vez a cada ano, ele acorda para buscar água na serra de Maranguape e dar de beber ao rio Ceará. Cumprida sua obrigação, se aquieta e volta a dormir”.  [...].

O segundo Espiroá é a quarta e monumental relação de viagem colhida do celeiro deste produtor maior, antecedida de Vou no bombo!, (2010), Sagandina (2012) e Carregadores de Melancias (2013), muito bem acolhidas pela crítica, pois primorosos textos enunciados em linguagem elevada, porém plenamente legíveis por qualquer pessoa de recepção regular, uma vez que foram tecidos com cuidado, verdade, inteligência, estesia e graça. Eis que, agora, restam sucedidos por esta Opus Magnum, retratada firmemente e com o ornamento de semelhantes atributos das obras precedentes, ao que se acrescem os ensinamentos usufruídos como réditos da sua indústria intelectiva até então exercitada, a cada dia mais reciclada, reformada e bem mais achegada aos umbrais da perfeição, por onde, decerto, adentrará triunfante no próximo exercício.

Espiroá é obra grandiosa, representativa da penetração intelectual e diligência verbal de quem se cuidou na escola formal e, em adição, se aprestou como autodidata no batente da vida, numa simbiose conducente à exata prontidão para escrever. Deriva, em segunda instância, da intrepidez de um grupo decidido a se esbrasear sob o sol, se enregelar ao sopro da ventania andina, sofrer a rarefação de certos ares sul-americanos, sob intenso perigo de doenças pulmonares, de expor-se aos acidentes de trânsito, bem como aos perigos de assaltos quando, exempli gratia, dos pregos das motocicletas, submetendo-se a toda sorte de riscos que somente a bravura indomável habilita a encarar.

A nova gema literoartística de Augusto Rocha merece, por conseguinte, ser lida por todos os nacionais amantes do motociclo, em particular pelas pessoas, aos milhares no País, apreciadoras do hábito de percorrer mundo sobre duas rodas, bem como por qualquer cidadão de língua portuguesa admirante de uma arte escrita em tão alevantada execução, numa mensagem impecável sob o prisma da forma, o espectro da nobreza lexical e o aspecto da capacidade de retenção dos fatos, enfim, da comunicação dissertativa em alta fidelidade, como sói verificar-se apenas com aqueles apercebidos de tamanho engenho de narrar ao abrigo dos mais relevantes pressupostos do texto – concisão, clareza, simplicidade, certeza e correção.

Espiroá constitui artefato imponente da literatura nacional!



*Extraído de MESQUITA, Vianney – Esboços e Arquétipos. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2016. Pp.128-132.


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