TODO
DIA ERA DIA DE ÍNDIO
Rui
Martinho Rodrigues*
Poetas muita vez revelam um discernimento superior ao de
pesquisadores. Um deles, comentando o dia do índio, lembrou, entre nostálgico e
melancólico, o tempo em que “todo dia era dia de índio”, antes da conquista das
Américas pelo colonizador europeu. Esquecidos de prestigiar o que deve ser
prestigiado, valemo-nos da instituição de um dia para manifestar cortesia e
honrar o que entendemos deva ser honrado. Temos o dia da criança, das mães, dos
pais, do professor, do estudante, do índio, do motorista e tantos outros,
inclusive o da mulher.
Certamente estamos reconhecendo alguma negligência para com
aqueles a quem dedicamos um dia. Adotamos, no pós-guerra, o costume de
verbalizar a consideração que temos para com os nossos conviventes. As gerações
da primeira metade do século XX, no Brasil, não adotavam tal prática.
Nossos pais, avós dos mais novos, não diziam com tanta
frequência como hoje que amavam as suas companheiras, mas elas eram muito mais
amadas do que as de hoje. Estas ouvem declarações de amor a toda hora.
A mulher, exercendo o que a velha e boa sociologia chamava
de papel social, no convívio com os filhos era mãe, sem ter um dia das mães.
Mas era muito mais considerada pelos filhos. No papel de companheira era muito
mais considerada pelos companheiros. No papel de professora era muito mais
respeitada pelos alunos. Na condição anônima de senhora ou de senhorita recebia
um tratamento muito mais respeitoso.
Hoje não é raro mães serem espancadas e até assassinadas
por aqueles que saíram do seu próprio ventre. Os cônjuges se agridem muito
mais. Há uma crescente violência nas relações de gênero. Não se trata só de
aumento da visibilidade do fenômeno, embora isso também ocorra.
O trabalho extradoméstico foi apresentado como libertação
do “pé do fogão” e como “conquista da militância” e das “lutas sociais”, mas
resultou mesmo foi do apetite da Revolução Industrial por mão-de-obra; da
convocação dos homens para as grandes guerras do século XX, levando a mulher a
substituí-los nas fábricas; e da busca de uma segunda renda para a família,
objetivando o acesso a uma cesta de consumo cada vez mais diversificada e mais
sofisticada, oferecendo comodidade, conforto, segurança e atendendo às nossas
vaidades. Estas coisas aconteceram nesta ordem cronológica.
A condição eufemisticamente denominada “rainha do lar”, foi
trocada pela obediência ao “apito da chaminé de barro”, conforme o dito da
canção popular de Noel Rosa. No lar ela era “rainha do fogão”, na fábrica era
subordinada à “chaminé de barro”.
Assim como a promessa de uma sociedade da liberdade, da
igualdade e da fraternidade levou a uma revolução – até hoje cantada em verso e
em prosa por intelectuais “do bem” – a mui fraternamente guilhotinar seiscentas
mil pessoas – assim também a “libertação do fogão” trouxe a superposição de
jornadas de trabalho no lar à submissão aos ditames da linha de montagem. Eis
as “conquistas” de que grupos de ativismo esforçam-se para assumir a autoria.
Milenarmente as sociedades organizavam-se das mais variadas
formas, mas sempre observando o dimorfismo sexual, hoje chamado “dimorfismo de
gênero”. Agora vivemos, pela primeira vez na história deste planeta, uma
sociedade unissex. Homens e mulheres tendem às mesmas ocupações e a
desenvolverem as mesmas habilidades, adotando os mesmos costumes. A igualdade
relativa aos direitos adquiriu, para o bem ou para o mal, o significado de
idênticos como pessoa.
Complementar à outra parte de uma relação, todavia, é quem
apresenta uma característica que falta ao outro lado da interação. Na sociedade
unissex todos são idênticos, um não é complementar ao outro. Este quadro é uma
novidade histórica. Não se sabe no que vai dar. Até o momento, a transição
enfrenta dificuldades, que poderão ser superadas, mas está sendo difícil, como
se pode ver pelo incremento do chamado conflito de gênero.
Por isso precisamos de um dia da mulher, precisamos
declarar-lhes o nosso amor, afirmar a nossa admiração e o nosso respeito, salvo
se tais coisas forem evidentes, se todo dia, no nosso convívio, for dia da
mulher, se ao invés de verbalizar estas coisas a nossa conduta seja a
concretização delas.
*Rui Martinho Rodrigues
Professor – Advogado
Historiador - Cientista Político
Titular Emérito de sua Cadeira de nº 10
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