sexta-feira, 29 de junho de 2018

CRÔNICA - A Crônica Aporta (RV)

A CRÔNICA APORTA
Reginaldo Vasconcelos*


Faz dias que não dou palavra. A alma muda, que só sabe dizer deixando dito na palavra grafada. E a boca da alma nesta inanição do verbo, emudecida pela espera e pela mágoa de não estar sendo ouvida. Mas a crônica, a poesia, vêm como cai a chuva e com nasce a relva, ao beijo do acaso, sem o voto e o arbítrio.

Hoje a crônica me visita com insistência, desde aquela criança negra, muito negra e muito alegre, muito rara nesta terra de mestiços convictos, com uns pingentes de ouro nas orelhas e um sorriso de pobreza feliz, que pela mão da avó nos estende a sua mãozinha.  

Depois, o vendedor de camarões, que barganha comigo, almoça conosco e confidencia. Revela enfim nascendo de novo não vende camarões: “Não, eu seria um cantor de rádio”, assevera. Limpa as mãos, imagina um palco, fasta do “público”, e canta um pouco assustando o meu cachorro. Fora calouro no passado, e o passado é presente no brilho de seus olhos. Despede-se e vai. A crônica fica.

Mais tarde, no recesso de uma sauna, o refúgio de mim. Mas aí, em mim o refúgio de um amigo, que toca a me falar das mágoas. Tem uma só mulher, mas sonha milhões. Gordo, paixão que não sara por uma primeira namorada, acorda em sobressalto de um sonho bêbado, procurando na esposa a fêmea etérea, de pele fresca e cabelo perfumado. Diz que não tem tido sorte na vida; desacredito um pouco; miúdo, compadeço-me. A crônica aflora.

De noite, um amigo-irmão e eu traficamos confidências que a cerveja patrocina. Nas lentes de seus óculos há uma constelação de brilhos, quais estrelas guias na navegação da vida. A crônica aporta.

Ao Leonardo Braga (1957 –1988).



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