segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

RESENHA - Boaventura Santos (RMR)


A FÍSICA PARA A FILOSOFIA
COMO A LAVOURA PARA A POESIA
Rui Martinho Rodrigues*


NOTÍCIA
Para onde vai a democracia? Esse é o ponto de partida do livro A difícil democracia (Boitempo, 224 pp, R$ 52), de Boaventura de Sousa Santos, que busca também discutir a urgente reinvenção da esquerda. Essa reinvenção passa necessariamente por uma reflexão profunda sobre os impasses da experiência democrática, cujos sintomas despontam de maneira mais aguda no presente. “Vivemos em sociedades politicamente democráticas e socialmente fascistas”, adverte o autor. Boaventura argumenta que a chegada dos governos de esquerda ao poder na primeira década do século XXI, especialmente na América Latina, não deu espaço para o debate sobre a diversidade democrática, o que resultou, na segunda década do milênio, no monopólio de uma concepção de democracia de tão baixa intensidade que facilmente se confunde com a antidemocracia. Ao longo de mais de duzentas páginas – compostas por ensaios, cartas e entrevistas sobre o mundo contemporâneo –, o sociólogo passa a limpo o percurso da democracia ao longo do século XX em uma escrita rápida e de fôlego. 


Eis o que a notícia sobre o livro do Boaventura de Sousa Santos[1] me faz pensar, considerando o que é dito na notícia e o que eu conheço dele:

O que o Boaventura de Sousa Santos chama de “sociedade fascista”? Ele considera que vivemos tempos de movimentos de massa controlados por fortes partidos de convicção e isso é típico da sociedade de hoje? Ele percebe uma forte crença em algum projeto messiânico? Registra a presença de fortes lideranças personalistas, à frente dos grandes movimentos de massa a que aludi? Isso seria fascismo, mas não vejo nada disso.

O festejado autor português, em outros escritos, lança mão da Física Quântica e relativista de um modo que me faz lembrar o livro do Alan Sokal e do Jean Bricmont (um matemático e outro físico) cujo título sugestivo é “Imposturas intelectuais” e o subtítulo é “O abuso da ciência pelos filósofos pós-modernos”, publicado pela BestBolso em 2014.

Os dois autores fizeram uma pegadinha: escreveram um artigo falando da Física referida e de alguns tópicos da matemática, dizendo essas coisas que filósofos e outros pensadores que não sabem Física gostam de dizer, limitando todo conhecimento a uma mera perspectiva, supostamente com base na teoria da relatividade e na física quântica.

Ao fazê-lo, navegam na esteira do “homem que falava javanês”[2]; desfrutam do prestígio da Física e da Matemática; e reforçam a ideia de que cognição e valores dependem da perspectiva de classe, abrindo a caixa de Pandora e tirando dela, entre outras coisas, a ética teleológica, que permite tudo a quem se coloca como “do bem”.

O artigo foi aprovado pelo conselho editorial e publicado por uma revista acadêmica de grande prestígio internacional. Choveram elogios por parte de pensadores de grande fama no mundo inteiro, em torno dos quais formaram-se “igrejinhas de adoradores”. Foi quando o matemático e o físico escreveram um artigo dizendo que era uma pegadinha. Tudo o que eles haviam dito sobre Matemática e Física estava errado.

Um filósofo francês muito cultuado (Jacques Derida, 1930-2004)que havia elogiado o artigo, defendeu-se dizendo que não era físico nem matemático, que sempre usou aqueles argumentos (errados) apenas como metáfora.

Alan Sokal e Jean Bricmont responderam dizendo que não se usa metáfora de algo menos conhecido, mais estranho à cognição de quem escuta, para explicar coisa mais simples. A polêmica causou impacto e os autores da pegadinha escreveram o livro sobre as imposturas intelectuais.

Eu não havia lido o livro a que estou me referindo e já achava estranho que tudo fosse tratado como mera perspectiva, sem uma separação do tipo proposição de que se trata. Afinal, quem fala em verdade precisa esclarecer se está se referindo à verdade lógica, à verdade objetiva, à verdade moral ou à verdade ontológica. Parece claro que a verdade lógica paira acima disso, salvo se nos apegarmos aos erros de verificação, que não devem ser postos como insuperáveis.

Quem diz que se “A” é maior do que “B”, e “B”, por sua vez, é maior do que “C”, então “A” necessariamente será maior do que “C” está dizendo uma verdade incondicionada. Quem diz “se” “A”, “B” e “C” etc, apresentam essa ordem de grandeza está se referindo às grandezas certas, sem incluir medições deformadas pela perspectiva, isto é, está se referindo a cada coisa como ela é, não nas ilusões ópticas de uma perspectiva. “A” pode ter 8cm, “B” 5cm e “C” 3cm sem condicionamento de perspectiva.

Falar a respeito de verdade sem especificar a qual tipo de verdade se está tratando me parece negligência, paixão ou conveniência. Incomodado com o palavrório sobre Física Quântica e teoria da relatividade, procurei, quando estava em Recife, na UFPE, fazer a disciplina de teoria da relatividade no curso de Física (no tempo de colegial eu gostei muito de Física), como opcional do doutorado em História.

Os físicos não aceitaram. Alegaram que não havia tal intercâmbio com a História e que eu teria de fazer um monte de disciplinas previamente necessárias no campo da Física, principalmente da Matemática. Disseram ainda que a física relativista era disciplina opcional até para os físicos, e que estes raramente se interessavam por ela, por causa da exigência de Matemática muito avançada. 

Finalizando, disseram que eu não me preocupasse com o “besteirol” que o pessoal de humanidades (e até alguns físicos) diz sobre o assunto, porque é óbvio que os fenômenos de partículas menores do que o átomo (Física Quântica) e velocidade da luz, ou próximos a ela, e desagregação ou fusão de átomos (relatividade) nada têm a dizer sobre os fenômenos históricos e sociais ou sobre a cognição ligada a estes fenômenos. Acrescentaram que a teoria da relatividade não pode ser expressa em nenhuma língua, circunscrevendo-se estritamente à linguagem matemática.

Acrescentaram que Einstein explicou sucessivas vezes a teoria referida, mas ninguém entendeu (leigos e até físicos alheios especificamente ao assunto), simplificando cada vez mais a explicação, até que foi entendido por todos, mas aí já não era a teoria da relatividade! Esta não seria relativismo nem relacionalidade, como foi dito na explicação que todos entenderam, mas que já não era a teoria em questão, em um livrinho de divulgação científica muito divulgado, seguido de tantos outros de outros autores.

Explicaram que a constante da velocidade da luz, que é independente da posição e da velocidade do observador (integrante da teoria da relatividade), contraria a ideia de relação ou relacionalidade, justamente por ser uma constante independente: não interessa para que lado o observador está se movendo ou se está parado, a velocidade da luz será sempre a mesma em relação a ele. 

Afirmaram ainda que a maioria dos físicos não sabe nada da teoria da relatividade.

Quando o Boaventura de Sousa Santos invocou a teoria da relatividade e a Física Quântica, em escritos pertinentes aos fenômenos histórico-sociais, lembrei-me dos positivistas, que pretendiam explicar estes fenômenos com os parâmetros da Física newtoniana; do homem que falava javanês (a semelhança das teorias que ninguém entende); das imposturas intelectuais – e deplorei a atitude do português renomado. Lamentei mais ainda que ele seja tão festejado.




[1]  Pensador português aposentado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Doutrinador jurídico nos campos da Filosofia do Direito e da Sociologia do Direito.

[2]  Conto do escritor brasileiro Lima Barreto que narra a história de Castelo, um malandro que, no começo do século XX, finge saber o javanês para conseguir um emprego e afinal fica famoso como um dos únicos tradutores desse idioma, sem encontrar quem o desmascarasse. 


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