ANTÔNIO DE
ARAÚJO – DOS ESCANINHOS DA ALMA
Vianney Mesquita*
Há defeitos que, bem manejados, brilham mais do que a
virtude. (François Duque de La Rochefoucauld - *Paris,15.09.1613
– +17.03.1680).
Decerto não assiste razão a quem cogita na ideia de uma humanidade
dispensada de toda a doença, na fruição de saúde ideal.
Este ponto é objeto de acuradas reflexões por parte de preclaras
autoridades da Ciência Médica e seus esgalhos disciplinares e afins, merecendo
ressalto o psiquiatra e pioneiro da Neurologia, facultativo estadunidense
Walter Riese[*Berlin, 30.06.1890; Richmond(Virgínia), 1976].
Em estudo de 1950- Princípios de
Neurologia – à Luz da História e seu Uso Atual, consoante assinala aquele
expoente, uma perfeita higidez física e mental faria menos rica a raça de hoje,
porquanto um imenso campo de atividade lhe seria poupado e recusado.
Para Riese, uma pessoa idealmente sã jamais nos ensinaria tudo de sua
capacidade, até seu ponto maior de resistência, quando as moléstias acham de
acometê-la.
Entre vários exemplos reproduzidos pela História, sob tal aspecto, nos
lembramos de leitura feita na nossa adolescência, salvante lapso de memória, na
Nova Seleta, organizada por Filgueiras
Sampaio, sendo oportuno dali pinçar o caso de Helen Adams Keller (1880-1968).
Esta foi uma fecunda escritora dos EEUU, a quem um ataque de escarlatina
tolheu a visão e subtraiu a audição, aos 19 meses e, no entanto, sob os
cuidados de Anne Sulivan (1866-1936), aprendeu muitas línguas e História
Latina, havendo escrito vários livros da mais distinta verve criadora, pintando
paisagens e descrevendo sons. Com sua força de fé, revelada na autobiografia A História da minha Vida, disse haver
criado seu mundo com visão, ter feito para si os dias e as noites, divisando nas
nuvens o arco-íris e, para ela, a própria noite se povoou de estrelas (LELLO,
1983-verb. Keller).
Transpondo, com efeito, todo esse balanço negativo, Helen Keller
demonstrou na doença, imposta como um fado, a possível vertente perpétua de
enriquecimento da Natureza. Daí a opinião de Walter Riese, para quem a noção do
homem, do qual moléstia e padecimento estejam ausentes, será sempre imperfeita.
Já Antônio de Araújo, em sua estreia com Memórias Esparsas – Flagrantes da Vida Real, guardado pelo desvelo
de sua família e tendo a enriquecer-lhe o caráter o fato de haver sobrelevado
as limitações físicas, não teve a ventura de, na realidade do Tio Sam, deparar
uma Anne Sulivan a lhe seguir os passos, alumiar-lhe a senda vital e a ele
conceder os favores permitidos a Helen Keller, tornada paradigma de superação.
Nem por isso, todavia, deixou de se crer propício à vida, dignitário de
sua condição humana, admiravelmente revelada nos exemplos da peleja, resignação
e vitória, como é expresso no esforço de ajuntar seus alfarrábios e reuni-los
em um volume, denotativo do seu preparo intelectual, na constância da
autodidaxia, sem ocorrer sub tegmini fagi
da escola formal.
Autodidata e na solidão de suas faltas corporais, porém, alcançou mais
este galardão, o qual, distante de ser um triunfo de Pirro II, aflui à opinião
de Walter Riese, cuja ideia de homem, sem neste haver doença nem sofrimento,
será perpetuamente inexata.
Antônio de Araújo, nesta seleção de muito bem trabalhados escritos,
demonstra, à farta, a aptidão humana do sobrepujamento, malgrado os
desprovimentos orgânicos, na conquista de um de seus anelos desde há muito
acalentado, fazendo-o – e isto é o mais relevante – de modo inteligente, tanto
no conteúdo como na forma, legando-nos uma peça literária e artística de
indiscutível valor, produzida no recôndito de sua boa alma, nos escaninhos de
um coração referto de amor.
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