segunda-feira, 11 de setembro de 2017

ARTIGO - Deveres e Cidadania (AS)


DEVERES E CIDADANIA
Arnaldo Santos (*)


Na democracia brasileira o princípio de cidadania encontra-se consubstanciado naquele que detém o poder originário, Sua Excelência o Povo. “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição". Assim preceitua a Constituição de 1988, que dedica o longo art. 5º, que se desdobra em 78 incisos, muitos deles subdivididos em parágrafos e letras sobre os direitos individuais e coletivos do cidadão e suas respectivas garantias.

Embora o conceito de cidadania incorpore, não só os direitos e garantias, mas também os deveres que o cidadão deve guardar e respeitar ante ao Estado, fica a referência aos deveres, a meu sentir, além de tênue, difusa, como pode ser observado em sua categorização.

Deveres do cidadão: votar para escolher os governantes; cumprir as leis; educar e proteger seus semelhantes; proteger a natureza; e proteger o patrimônio público e social do país. Colocados dessa forma, esses deveres são pouco observados, inclusive pelo próprio Estado. Basta notar o descaso com o meio ambiente.

Em uma sociedade cuja maioria é pouco letrada, e a chamada elite, em geral, é politicamente analfabeta, culturalmente ignorante, e socialmente insensível; além de trazer em seu DNA a cultura patrimonialista, que a faz na prática “detentora de todos os direitos e quase nem um dever”, gera toda essa distorção no exercício da cidadania.

A forma pouco enfática dispensada aos deveres e obrigações que os indivíduos deveriam guardar, (o condicional “deveriam” é de propósito) para com o bem coletivo, tem levado até os ditos “letrados, politizados e urbano” no dizer do professor Rui Martinho Rodrigues, a confundirem o dever de votar (o voto no Brasil é obrigatório), com direito ao voto, que é basilar em qualquer democracia.

Preconceito, excludência, racismo velado, homofobia explícita e outras amputações sociais são extensões dessa deformação do conceito de cidadania; em parte pelo elitismo predominante, em parte porque os mandarins políticos, e ou econômicos, fazem as leis para os outros cumprirem, pois se julgam superiores a todo e qualquer regramento jurídico, e, em parte, por ignorância e falta de educação, pura e simplesmente.

Qualquer das razões tem sua origem na total ausência de uma cultura de pertencimento entre os indivíduos, manifestada a partir do desprezo para com o patrimônio público, e em relação às regras de convivência estabelecidas para o conjunto de uma sociedade dividida em classes, gerando o abominável sentimento de superioridade entre os que se situam no “andar de cima”.

A catástrofe maior dessa deformidade do exercício da cidadania sem nenhum dever se materializa na usurpação dos direitos mais elementares pertencentes ao coletivo, que podemos definir como a violência nossa de cada dia, nas mais variadas formas e disfarces.

No contexto das médias e grandes cidades por exemplo, a mobilidade urbana trouxe em seu cerne uma reivindicação coletiva, materializada nas faixas exclusivas para a prática do “bicicletar”; para a classe “superior”, ou simplesmente pedalar para a maioria.

O estranho é observar que, parte dos que, no exercício legítimo da cidadania e dos direitos, pressionam o poder público para construir, com o dinheiro de todos, as ciclovias, são os mesmos que estacionam seus carros luxuosos encima das calçadas, impedindo o ir e vir dos pedestres. Param em vagas exclusivas para cadeirantes e idosos, em filas duplas e, às vezes, triplas, em portas de colégios, em flagrante descumprimento às leis de trânsito, que são igualmente dever de todos, segundo o conceito de cidadania, e em desapreço aos direitos coletivos. E ainda se revoltam quando multados. Não raro ainda se ouve o “você sabe com quem tá falando?”.

Em relação ao fenômeno da endêmica corrupção no Brasil, o princípio de amputação do republicanismo ético, do dever moral, e a obrigação individual e coletiva de não roubar e não deixar roubar, não é diferente. A Constituição, os códigos penal e civil são para todos os outros, menos para os que governam o País.


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