sexta-feira, 13 de maio de 2011

Conto


Ponto final...


É chegada a hora do desenlace, do ponto final, da derradeira manifestação que será transformada em regra e chancelada pelo espírito legalista forense, sempre ávido por normativos, que conduzam como gado uma sociedade pacificada pelo imobilismo e pela inércia de quem dorme letargicamente em berço esplendido.

No nascedouro do novo milênio, eis que o judiciário pátrio é instado a pronunciar-se sobre os direitos constitucionais de um pacato cidadão chamado por Gustavo Stanislaw Pompeu, brasileiro exemplar, septuagenário, bem apessoado, casado e amante de sua única esposa, que sempre lhe retribui o carinho.

Cumpridor de obrigações, severo na observância do texto da lei, trabalhador produtivo – daquele que ama a profissão e a ela se dedica – profissional liberal honesto (modesto, mas a sorte lhe sorria), de vida confortável e morigerada, possuidor de apartamento bem localizado e casa de praia que recepcionam o seu dia-a-dia, Gustavo é tão saudável que nem gripe o alcança.

Sequer possuia vícios ou mazelas, que jamais causara prejuízos a quem quer que fosse – caridoso, atencioso, risonho e alegre – era admirado e querido por todos, não encontrando no seu passado um desafeto ou ato desabonador. Em suma, Gustavo apareceu e desaparecerá da face da terra sem deixar rastro de sua passagem, pois, afinal, do bem ninguém ouve falar.  

Estamos em 2025, o Brasil cambaleante vem melhorando, a democracia prevalece na América Latina pacificada, de quarteladas não mais se tem notícias, os indicadores socioeconômicos favorecem, a miséria está serenada, um bom governo se inaugura, coroando gestão antecedente de nobres realizações. Quanto ao Congresso Nacional e ao judiciário, o de sempre.

Nem tudo é perfeito... Inclusive o ser humano que possui uma mente capaz de produzir sensações de carências e de desconforto deformador da realidade, mesmo que habitasse no paraíso e lá nada lhe faltasse, pois se assim fosse, ainda sentiria a falta da falta, dos momentos difíceis e do desejo de suplantar os desafios. A insatisfação que é a regra, não se aplicava ao caso.

Mas deixemos de lado as coisas do inconsciente e suas esquisitices, e voltemo-nos ao incidente que suscitou a prevenção ao malferimento do texto constitucional, quanto aos direitos da pessoa humana e suas prerrogativas.

Visando assegurar direitos que julgava possuir, Gustavo Pompeu, ajuizou ação que foi submetida à apreciação do Supremo Tribunal Federal, postulando a segurança jurídica para o direito inalienável de por fim a sua própria vida, quando lhe aprouvesse, postulando que o Estado garantisse, por intermédio do Sistema Público de Saúde.

Ele requeria toda a assistência médica necessária para assisti-lo em seu suicídio, minorando assim os efeitos traumáticos da incivilizada agonia da morte, outorgando-lhe o acervo instrumental necessário para auto-aplicar um químico, cuja alquimia de impecável farmacologia lhe propiciasse um fenecimento rápido, indolor e digno, sem o padecimento da pirotecnia dos enforcamentos, dos acrobáticos saltos de edifícios ou dos desfigurantes tiros na fronte, que provocam tanto espanto, e mais estrago aos viventes do que àquele que parte.

Gustavo não tinha doença terminal, desespero, desamor, ou qualquer outra mazela mundana que o estimulasse à finitude consciente. Simplesmente não queria esperar impaciente o arbítrio fatídico da morte, mas, doutro modo, desejava surpreendê-la e protagonizar seu último momento, deixando o evento sob seu tirocínio e oportunidade, facultando-lhe a escolha do momento ideal para finalizar sua própria existência.

Pretendia não viver o vexame da morte aos poucos. Não desejava experimentar o masoquismo da perda dos sentidos, da frustrante imobilidade decorrente da fragilidade da musculatura e da desintegração dos ossos; temia sofrer as vexatórias falhas de memória, do experimentar do ócio e da improdutividade compulsória; da desconstrução de uma imagem que passara anos e anos lapidando-a com o esmero dos escultores romanos; das dores que freneticamente diversificadas teimavam em inusitar sem repetir lugar, consumando em definitiva as enfermidades sazonais trazidas pelo transcorrer do tempo. Nem pretendia ser o testemunho vivo de sua asquerosa e paulatina falência múltipla, que sequer permitir-no-iam limpar-lhe a própria bunda.

Apesar de todo temor e destemor, Gustavo não estava com o pé na cova. Ser disposto e bem vivente, continuava são e lúcido, mesmo com o desconfiar de muitos, que questionavam a torpeza de sua motivação.

O tema dividia opiniões, os Ministros do STF debatiam a matéria exaustivamente sem consenso, embolavam-se em argumentações configuradas em votos, sem contudo debelar a controvertida questão que chegara ao final com escore repetido em 5 x 5, demonstrando que a ação abalara o Supremo, o qual ficara sem conseguir posicionar-se claramente por um lado ou outro, restando, ao final, apenas o voto desempatante do Presidente, que ao pedir vista, reservou para si a responsabilidade personalíssima de instituir a norma final, que impactaria doravante o regramento legislativo.

Esperando a decisão como final de campeonato, os ânimos inflamaram-se. Todo o país discutia, a mídia intermitentemente relatava opinião de especialistas, pregadores. Pastores e religiosos com seus dogmas exacerbados protestavam, vociferavam que era chegado o fim dos tempos. Até o Vaticano manifestou-se contrário a atuação do Estado para o fornecimento do instrumental suicida, que alem de tudo poderia ser compreendido como um estimulo para a busca da morte prematura, procedimento que poderia ser adotado por muitos.

O Governo brasileiro permanecia calado. Não metia a mão em cumbuca. As poucas manifestações eram isoladas e não poderiam ser consideradas com um posicionamento do coletivo; ademais as opiniões eram igualmente variadas e divididas.

Grupos organizados atuavam e faziam pressão em bloco. Mobilizavam-se de norte a sul. A forte bancada evangélica no Congresso Nacional apressava-se na apresentação de Projetos-Lei capazes de impedirem uma eventual decisão contrária ao maior cânone divino: a vida. Entendiam que o dom da vida é indisponível ao ser humano, e que não seria uma lei terrena que poderia subtrair de Deus a prerrogativa da concessão e a retirada da vida.

Os Deputados da pequena, mas zoadenta bancada dos Materialistas, apoiando o pleito de Gustavo, bradavam em seus discursos, que não viam no apelo dos religiosos, a tão elevada ortodoxia espiritual pela preservação da vida, já que permaneciam inertes e convenientemente calados, quando um prisioneiro era levado à cadeira elétrica, à câmara de gás ou ao pelotão de fuzilamento. Nem mesmo incomodavam-se com seres humanos fenecendo em guerras e conflitos sem fim.

Não havia norte para a razão. Opiniões, razões e contrarazões entrechocavam. Discutia-se nas ruas, nas escolas, no trabalho, enfim em todo lugar, vira-e-mexe o tema era um só: o direito de Gustavo Pompeu; o céu e o inferno; a vida e a morte; a ressurreição e a reencarnação; Deus e o Diabo; a vida após a morte; e tudo mais que da imaginação decorresse.

O drama das ruas inundava os pensamentos do solitário Magistrado, que debruçado sob os tomos da literatura jurídica e o papelório dos autos, organizava seus pensamentos no balançar da bengala que sempre o acompanhava. A frenética discussão corroia o sono do julgador, transtornando a tranqüilidade de um homem de 75 anos, que não se imaginava decidir matéria tão controvertida e que envolvia seus próprios sentimentos e credo.

Conservador, religioso praticante, pio desde o nascimento, batizado, crismado, casado sob as bênçãos do Senhor, daquele que comunga e confessa, de ofertar orações genuflexo, portador de terço na carteira, que se julga em graça com o respingo da água-benta, vivia sofridamente cada momento de sua solidão decisória, vacilando entre a fortaleza do argumento da parte, bem fundamentada e em consonância com texto das garantias fundamentais encartadas na Constituição de 1988, que no passado jurara defender, e o aplicar dos altos preceitos doutrinários cristãos que permeavam sua trajetória de vida.

No seu íntimo, acovardado, o Ministro-Presidente do STF ardia em pira, pois não conseguira encontrar saída para seu dilema pessoal. Digo melhor, foi buscar alternativas bíblicas para suplantar as paredes do purgatório em que se encontrava, e inspirando-se em Pilatos, lavou as mãos nas águas turvas da indefinição.

Amparado na sua incontroversa religiosidade, o Magistrado temeroso do rigor do Juízo Final, precavido, decidiu esquivar-se da audiência com o Capeta, dando-se por impedido de pronunciar de forma isenta e imparcial sua decisão, que estava comprometida em decorrência de sua fé ortodoxa, declinando pois, do voto e da minerva, deixando no limbo a questão de vida e morte.

Irresignado com a omissão deliberada do SFT, Gustavo promete e se compromete a por cabo a sua vida, resguardando o grand finale para o momento que lhe aprouver, sem fixar de pronto data e hora, mas de logo reservara o lugar onde será posto um ponto final. Garante que falecerá na Praça dos Três Poderes, diante do imponente, mas inoperante palácio que lhe negara justiça, assegurando ainda que recorrerá aos meios dramáticos ao alcance, já que outra alternativa não lhe fora permitida.

É esperar para ver... Agora resta o desafio de surpreender a Morte e o STF. 

Obra de autoria do 
Acadêmico Alfredo Marques

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