segunda-feira, 29 de junho de 2020

CRÔNICA - Motivo (ES)


Motivo
Edmar Santos*


Eu Canto Quem Viver Chorará” é um álbum de estúdio do compositor cantor, e instrumentista cearense Raimundo Fagner, lançado pelo selo CBS em 1978.



/Eu canto, porque o instante existe/
/E a minha vida está completa/
/Não sou alegre nem sou triste, sou poeta/
/Não sou alegre nem sou triste, sou poeta/
(...)

Esta música, interpretada pelo cantor e compositor cearense Raimundo Fagner, que musicaliza uma das inúmeras e belas obras da poetiza carioca Cecília Meireles, traz em seu bojo a essência de um modo de existir. A poesia é, dentre tantas outras coisas, uma forma de dizer a vida.

A existência busca sentido e isso nos adoece de ansiedade pelo que está por vir, e que nos foge ao conhecimento, ao controle. O futuro é sempre fonte de incertezas... E como isso é perturbador!

O que considero meu agora pode ser perdido em instantes; quem vejo agora comigo, em instantes pode deixar-me, como eu possa também deixar alguém. O segundo do vacilo é sempre o que está à frente. A poesia nos ensina: /Eu canto, porque o instante existe/. Ele existe e não o dominamos porque veio do futuro, e chegou e se fez o agora, justamente, o inusitado, o incerto. Cantar é a resiliência para vivenciar esse instante que agora se faz, enquanto aguardo o outro que ainda se fará, e assim será por toda a existência.

Futuro, presente e passado, fluem em nós a despeito de nossa vontade. São parte de um todo que não nos está ao alcance controlar, e esse todo é o tempo. Contamo-no, no entanto, com tanta imprecisão que apenas nos conforta saber que fracionamos o claro do dia e o escuro da noite. Tudo está na efemeridade, que é a mais presente certeza do existir. É nossa parente desde o nascimento. Por isso afirma à poesia:/ Irmão das coisas fugidias/. Tudo passa.

Vivo para o viver, e se há um objetivo para isso, que seja o de amadurecer nessa força motriz que me move, a que se chama espírito. E alcançar o ápice desse amadurecimento traduz-se no momento em que eu poder, com clareza e convicção no falar e no agir, dizer:

/Não sinto gozo nem tormento/
/Atravesso noites e dias no vento/
/Se desmorono ou se edifico/
/Se permaneço ou me desfaço/
/Não sei se fico ou passo/

Nesse momento, onde essa consciência se fizer em mim, morada do meu ser, conduta testemunha de minha personalidade, estarei eu pronto para o instante que nos é limite do existir, nesse ponto saberei por que cantar: /Eu sei que eu canto e a canção é tudo/

O meu voar segue no bater das asas que alam minha mente; /Tem sangue eterno a asa ritmada/, e me leva ao “terceiro céu” onde habita o dono do tempo.


Canto agora porque minha voz ecoa aos ouvidos dos que me lembrarão por breve período, enquanto algo de mim se fizer presente. /E um dia eu sei que estarei mudo, mais nada. / E minha voz, imaterial como tudo neste mundo, fluirá até esgotar-se.



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