A CRÔNICA DO
ARBÍTRIO ANUNCIADO
Rui Martinho Rodrigues*
A obra “A crônica de uma morte anunciada”, de Gabriel Garcia
Márquez (1927 – 2014) não é uma narrativa linear. É realismo fantástico, mágico
ou maravilhoso. O autor colombiano tem nuances que distinguem a vertente sul-americana
da escola Europeia homônima, pelo acréscimo de alguns traços épicos à escola
citada, dando um tom de verossimilhança aos textos. Fantástico e épico estão presentes
na política e na sociedade brasileira, manifestos nos acontecimentos espantosos
e no inacreditável. Os aspectos épicos estão nos fatos objetivamente
extraordinários, aparentemente lendários, porém não heroicos, mas deploráveis.
Banalizar a violação da separação dos Poderes da República; desprezar
as garantias constitucionais, como processo acusatório; a necessidade de objeto
definido nos processos e inquéritos; ou apurar e punir condutas não tipificadas
como crime, todas essas são coisas fantásticas. Praticadas pelo Pretório Excelso, indubitavelmente ultrapassam a ficção do gênero que mistura o inacreditável com
os fatos objetivos, ao modo sul-americano do realismo mágico.

Prendem-se manifestantes pacíficos, não os violentos. A liberdade
de expressão de blogueiros sofre restrições, não a grande imprensa. Prisões sem
processo e sem flagrante, até por conduta não tipificada, como é o caso das
“fake news”, que, se não são calúnia, injúria ou difamação, são condutas penalmente atípicas.
O STF restringe o uso de algemas e prisão processual, beneficiando
quem sofreu reiteradas condenações judiciais, mas algema e prende sem
condenação outras pessoas. Themis recuperou a visão? Críticas aos titulares de
cargos são consideradas ataques às instituições, como se criticar o marinheiro
fosse atacar o navio. Colocando-se acima da crítica, Ministros se tornam os “mais
iguais”, da “Revolução dos bichos” de George Orwell (Eric Arthur Blair, 1903 –
1950).
A origem do mal, descrita por Hannah Arendt (1906 – 1975) estava no
aparato legal que orientou Adolf Eichemann (1906 – 1962). No ativismo judicial a
maldade está na astúcia de quem, desiludido da revolução pelas armas e sem
maioria de votos, ressuscitou os reis filósofos de Platão (448/447 a.C. –
328/328/327 a.C.).
Vestidos de toga, com uma constituição analítica e programática,
positivando princípios (porque abertos à subjetividade da autoridade), quebrando
os grilhões da lei e “libertando o juiz” em nome da justiça, trocaram a
interpretação pela concreção. Esta passa da abstração da norma para o caso
singular, pela nova hermenêutica constitucional.

O tenentismo de toga se coloca como órgão supletivo do Judiciário. Legisla
no que o Congresso se abstém para não contrariar o eleitorado. Nada mais
antidemocrático do que um tribunal contrariar o eleitorado, forçar uma mudança
cultural, movido por paixões, interesses ou convicções. “Fazer justiça”, para Friedrich
Wilhelm Nietzsche (1844 – 1900) é vontade de potência. Torpezas se valem de
argumentos nobres.