terça-feira, 4 de outubro de 2016

ARTIGO - Deformadores de Opinião (RMR)


DEFORMADORES
DE OPINIÃO
Rui Martinho Rodrigues*



O massacre do Carandiru chocou o Brasil, chocou o mundo, e a impunidade deve ser repudiada.

O Tribunal de Justiça de São Paulo absolveu alguns réus acusados de participação no massacre aludido. Eram policiais militares, integrantes da força que ocupou o presídio e indubitavelmente praticou o massacre no qual perderam a vida cento e onze presos. A força policial não teve nenhuma baixa. O laudo pericial apontou a existência, nos corpos das vítimas, de lesões sugestivas de execuções. Tudo isso é corretamente destacado. 

O público não entende a absolvição. Formadores de opinião também não entendem. Os órgãos de comunicação têm comentaristas de esporte, de economia, de política, de moda, de automobilismo, de arte, do meio ambiente e de outros temas. Mas falta aos meios de comunicação quem comente criteriosamente os aspectos jurídicos dos fatos noticiados, apesar de vivermos uma dramática judicialização da política e das relações sociais, com publicização do Direito Privado, sob o rótulo de “Direito Civil Constitucional”  além do noticiário policial de proporções compatíveis com as dimensões da criminalidade.

Ignorando os meandros do Direito ou colocando as suas próprias razões acima do ordenamento jurídico pátrio, os formadores de opinião estão se metamorfoseando em deformadores de opinião. O Tribunal de Justiça de São Paulo está sendo apedrejado por haver absolvido alguns réus do execrável massacre do Carandiru. O argumento apresentado como fundamento da decisão em comento foi o da individualização da pena. Os deformadores de opinião não entenderam ou não aceitaram o fundamento da decisão. 
Mas qual é o significado do princípio da individualização da pena? Significa que não se pode condenar em massa, sem distinguir o grau de participação individual de cada pessoa envolvida em um crime. O exemplo clássico, nas provas de Direito, é o caso em que dois indivíduos efetuam disparos e um terceiro é atingido. A vítima levou apenas um tiro. Não se consegue apurar qual dois atiradores atingiu a vítima. A solução considerada certa nos exames dos concursos e nas provas das universidades é a absolvição dos dois réus. Não se sabendo qual deles atingiu a vítima nenhum será considerado culpado, por estarem abrigados sob o princípio da individualização da pena, obstaculizado, no caso, pela dúvida pertinente a autoria.

Na ocasião da denúncia a dúvida é fundamento válido para que seja estabelecido o procedimento processual criminal. Mas, encerrando o processo, a dúvida exclui a condenação, conforme os brocardos latinos in dubio pro societate e in dubio pro reo, respectivamente,

O alarido que se levantou contra a decisão do TJSP foi reforçado por um desembargador falastrão que, falando fora dos autos, cometeu o absurdo de negar a existência do massacre. O bom fundamento da individualização da pena, impedida esta individualização pela dúvida quanto a autoria individual, foi eclipsado pela declaração infeliz do desembargador boquirroto, invocando a negativa da existência material do crime, argumento obviamente pífio.

Juízes estão falando demais, a começar pelo STF.




COMENTÁRIO:

Juridicamente falando, o artigo de Rui Martinho Rodrigues sobre o Carandiru é clínico e é cirúrgico. Ele diz que houve, sim, o massacre. Ponto. Um grave crime coletivo foi cometido. Ponto.

Quem diz que não houve, negando a materialidade do crime, é um ponto fora da curva no gráfico lógico da verdade real. Quem diz que não houve crime celebra no culto de quem defende que “bandido bom é bandido morto”.

Mas a absolvição dos policiais pelo Tribunal de Justiça está perfeita, tecnicamente, porque no caso não se pode precisar quem teria matado quem. Pronto. Sabe-se que dentre os absolvidos muitos são culpados realmente, mas o problema é que não se pode saber quem entre todos seria inocente, levando em conta que estes não estavam ali por vontade própria, mas em nome do Estado, no estrito cumprimento do seu dever legal. 

A Justiça pode, eventualmente, cometer impunidade, por desídia ou aporia jurídica, como acontece neste caso. Mas a Justiça não pode cometer injustiça. Ela prefere mil culpados absolvidos a um só inocente condenado. E por isso o Tribunal de Justiça absolveu o grupo inteiro. A dúvida inafastável, para o julgador, é uma fatalidade técnica que o impede de condenar. E ele não pode fugir da técnica sob pena de cometer arbitrariedades.

Reginaldo Vasconcelos  



Nenhum comentário:

Postar um comentário