ENCRUZILHADAS
HISTÓRICAS
1ª Parte
Rui Martinho Rodrigues *
Considerações
preliminares
Transformações históricas, profundas e abrangentes podem modificar os costumes, a economia, a organização social, jurídica e política, reconfigurando a correlação de forças entre as potências no pesado jogo internacional da geopolítica. Assim, embora a todo momento aconteçam mudanças, certas ocasiões caracterizam transições de períodos históricos. A queda de uma árvore não é um acontecimento histórico. Mas se o tronco caído provocar o desvio de um caminho de formigas na direção de uma grande plantação, provocando uma grande perda na colheita, então a queda da árvore será um acontecimento histórico, conforme Barbara Tuchman (1912 – 1989), na obra A Prática da História.
Não só na produção de bens materiais a solução de problemas muda o mundo. Os gregos adotaram um processo decisório para a solução de problemas políticos, baseado na tentativa de debate racional e votação, renunciando ao uso da força, conforme Olivier Nay (1968 – vivo), na obra História das ideias políticas. Profundas mudanças na organização política e jurídica nasceram daí, evoluindo para a democracia. O fenômeno político é ação finalista do homem, admitindo-se que este exerça o papel de sujeito dos acontecimentos. Tenha, juntamente com as demais influências, uma natureza humana, além da constelação de fatores que promovem a dinâmica os fatos e atos. A influência dos aspectos socioculturais, as condicionantes do chamado poder suave e os efeitos da solução de problemas materiais; ao lado da coerção do chamado poder duro nos condicionam parcialmente; mas existe a natureza humana e a História não é despersonalizada.
Estabelecer os marcos da periodização histórica sofre limitações decorrentes dos problemas da diacronia e da sincronia histórica. A distância enseja uma visão mais ampla da montanha, conforme de aconselha Nicolau Maquiavel (1469 – 1527), na obra O Príncipe. É mais fácil demarcar períodos históricos depois de muitos anos, porque os desdobramentos dos fatos e atos podem ser observados com o passar do tempo. As, rápidas, profundas e abrangentes transformações em curso talvez sejam as maiores ocorridas em tão poucos anos. É oportuno reconhecer um novo período histórico. Há quem fale em pós-modernidade (Gilles Lepovetsky, 1944 – vivo, em A Sociedade Pós-Moderna); como em sociedade líquida (Zygmunt Bauman, 1925 – 2017, em Sociedade Líquida) e em sociedade global (Marshall McLuhan, 1911 – 1980, em A Aldeia Global).
O reconhecimento do mundo emergente
As civilizações nascem, crescem, fenecem e morrem (Arnold Toynbee, 1889 – 1975, em Um estudo da História). É possível definir o fim de um período e o início de outro pela morte e o nascimento de uma civilização. Após o fim de um período, pode haver uma indefinição anárquica. A fase anárquica, para quem entende que o caos é insuportável por muito tempo, seria uma transição seguida por uma nova ordem. Pergunta-se: (i) a civilização ocidental morreu ou (ii) está se adaptando a novas realidades? Dizer que ela morreu ou permanece viva exige que se tenha uma ideia mais ou menos discernível do seria tal civilização.
A
civilização ocidental pode ser descrita como uma mistura (a) da tradição
cosmocêntrica dos gregos, com a Filosofia teorética, misturada ao (b)
Direito e ao pragmatismo romano, temperado com (c) o teocentrismo da
tradição judaico-cristã. A sobrevivência da civilização ocidental seria a
permanência destas influências. A busca e o reconhecimento de um logos
impessoal, universal e cósmico, herdado da civilização grega, que buscava
superar a simples opinião (doxa) está em crise. A razão dedutiva do silogismo;
somada ao raciocínio indutivo, sob a vigilância epistemológica da lógica
aristotélica, tem sido repudiada.
A razão é questionada como instrumento de dominação ou em nome da dialética que Lucio Colletti (1924 – 2001) nomeava como senhora de costumes cognoscitivos fáceis. A razão impessoal tem sido questionada por uma razão identitária antropocêntrica. O componente grego da civilização ocidental declina. A subjetividade assume um protagonismo antagônico à superação da doxa. Adota um voluntarismo que chega a negar realidades objetivas em nome da subjetividade. Homens se dizem cachorros prisioneiros em um corpo humano e por isso exigem direitos. Contraditoriamente, porém, cresce o repúdio ao subjetivismo de quem condena as manifestações da contracultura. A censura alega combate ao “preconceito”, mas combate ao subjetivismo do outro.
A permissividade cognitiva que permite aos novos gestores da moral negar a realidade objetiva, não se aplica aos dissidentes. Seria uma nova ética? Qual seria o seu fundamento de validade? Não é teocêntrica. Não pode invocar a vontade divina. É cosmocêntrica? Neste caso não poderia dizer que a objetividade de um corpo humano cede lugar à subjetividade canina. Então só pode ser antropocêntrica. Neste caso falta dizer qual é o critério de validação que pode dirimir as divergências ou conflitos entre subjetividades. Seria a maioria? Faríamos plebiscito para decidir se um cachorro pode ter um corpo humano, substituindo juízo de realidade por juízo de valor? Isso merece outra reflexão.
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