sábado, 4 de junho de 2022

ARTIGO - O Desafio da Contemporaneidade (RMR)

O DESAFIO DA
CONTEMPORANEIDADE
Rui Martinho Rodrigues*
 

 1 – Introdução

A condição humana é histórica, construída, mais do que natureza. Renê Girard (1923 – 2015) afirma que não nascemos com uma identidade definida, na obra “Do mimetismo à hominização”. Somos produto da imitação. Mas temos um núcleo dado pela natureza.

Claude Lévi-Strauss (1908 – 2009) admitia a existência de um já dado, uma aptidão natural, original, própria da nossa essência, não na forma do conhecimento inato do pensamento clássico, mas uma capacidade de desenvolvimento. A nossa dimensão histórica ou cultural é fortemente influenciada pelo meio em que vivemos. Isso é contemporaneidade, no sentido de ser ou pertencer a um período histórico. Não somos, todavia, apenas reprodução passiva das circunstâncias. 

Não somos, todavia, apenas reprodução passiva das circunstâncias. Nicolau Maquiavel (1469 – 1527) entendia que a fortuna pode ser árbitra de metade das nossas ações, mas nos deixa governar quase a outra metade. Então o desafio da contemporaneidade é ser e não ser servo de Cronos, sem ignorar o implacável devorador de quase tudo.

2 – Ser contemporâneo e ser sujeito da ação social

Exercer a ação social como sujeito é interagir com as circunstâncias históricas, ao invés de deixar-se levar por elas. Ser contemporâneo é coexistir na mesma época ou ser de um mesmo período histórico. Somos e não somos de um tempo. A diversidade de cada época abre espaço para a parte das nossas vidas que podemos governar. Precisamos discernir qual é tempo atual. A sucessão de fatos e atos foi acelerada. Os três tempos referidos por Fernand Braudel (1902 – 1985) com diferentes ritmos de tempo, com longa, curta e média duração, parecem, atualmente, convergir para o ritmo mais breve. Referências estéticas, éticas e cognitivas tornaram-se visivelmente perecíveis. 

2.1 – A sociedade líquida 

A instabilidade levou Zygmunt Bauman (1925 – 2017) a falar em modernidade líquida, ao referir-se à sociedade do nosso tempo. A velocidade com que os padrões foram afastados foi impulsionada por um certo tipo de visão libertária. Padrões podem ser limites às liberdades individuais. Mas afastar alguns deles não significa necessariamente libertar-se. A liberdade é uma espécie ou conjunto de espécies do fenômeno político, gênero que tem horror ao vácuo. Novas ortodoxias surgem. Herbert Marcuse (1898 – 1979), na obra “Eros e civilização”, discorre sobre uma revolução primordial em que o macho alfa da horda primitiva é assassinado, em levante contra o monopólio das fêmeas. Ressalta que o tabu do incesto já havia sido introjetado e permaneceu após a revolução mencionada, que precisou criar mais normas repressivas para organizar a nova ordem na ausência do macho dominante. A isso Marcuse denominou mais repressão. 

2.2 – A falta da heteronormatividade 

A obra “A sociedade da decepção”, de Gilles Lipovetsky (1944 – vivo), expõe desapontamentos com a voracidade de Cronos, que tudo destrói, e com a instabilidade do mundo pós-moderno. Não devemos ignorar o nosso tempo, nem seguir todos os seus passos. Ser e não ser contemporâneo é um grande desafio. Abandoar todas as práticas culturais aprovadas pela experiência histórica não é prudente. 

Vivemos um tempo de contradições. O cosmopolitismo e nacionalismo exacerbados se misturam. O choque de civilizações desafia a integração crescente das culturas e até das economias na aldeia global de Herbert Marshall McLuhan (1911 – 1980). O multiculturalismo diferencialista se opõe ao cosmopolitismo, ao multiculturalismo interativista e ao relativismo cultural que o acompanha. 

O impacto de novas tecnologias ameaça a privacidade e o segredo. O cientificismo convive com os sofismas e com o relativismo axiológico e cognitivo. O protagonismo das massas enfrenta o fortalecimento das técnicas de manipulação potencializadas por novas tecnologias que criam possibilidades de controle social maiores do que na ficção de Georg Orwell (1903 – 1950). Ser contemporâneo é conviver com tudo isso. Não ser contemporâneo, porém, pode ser uma forma de resistência. 

2.3 – Ser e não ser contemporâneo 

Resistir aos crescentes meios de manipulação e difusão de expectativas irrealizáveis evita as decepções aludidas por Lipovetsky. O ceticismo em face das contradições formadas pelo individualismo solipsista e pelo niilismo misturado com um altruísmo virtuoso intolerante e suspeito é saudável. A pós-modernidade afastou o rigor epistemológico e entronizou o relativismo, feriu gravemente o maior instrumento de solução de conflitos sem uso da força, que definia a razão e o Direito entre uma pretensão e a resistência que a ele se opõe, compondo um conflito. Esta era a herança atávica da democracia semeada pelos gregos: a substituição da violência pela argumentação no processo decisório dos negócios da polis, segundo Olivier Nay (1968 – viva). Esta conquista dos gregos não é contemporânea, mas deve ser preservada. 

A paz social foi o argumento que legitimou o monopólio da violência pelo Estado, que proscreveu a justiça privada e assumiu a solução de conflitos, atitude que tem alguma afinidade teórica com o Leviatã de Thomas Hobbes (1588 – 1679). A política é da essência da ação estatal, cuja legitimidade depende do consentimento dos governados, na concepção de John Locke (1632 – 1704) concernente a cidadania. Mas não basta o consentimento dos governados para estabelecer a legitimidade. As maiorias são sempre ocasionais e não devem ser absolutas. Elas têm natureza política. Atos e fatos políticos não podem prescindir de um fundamento além do pragmatismo. A paz social precisa de algo que transcenda os interesses, pois estes nem sempre são universais. 

Nenhum poder deve ser absoluto, no sentido de incondicionado, da própria essência da coisa, independentemente circunstâncias (Nicola Abbagnano, 1901 – 1990, Dicionário de Filosofia). Norberto Bobbio (1909 – 2004), na obra “Teoria geral da política”, afirma que a política e o Direito são legitimados mutuamente um pelo outro. O absolutismo da representação ou mesmo da participação, ainda que amplamente majoritárias, não é democrático quando se afirme como ilimitado. O Direito sem o consentimento político também não é legítimo. Vale ressaltar que Bobbio é havido com juspositivista. O próprio Hans Kelsen (1881 – 1973) recorreu a uma norma hipotética fundamental para legitimar o Direito positivo no mais alto nível hierárquico. 

O juspositivismo afasta as considerações acerca dos fundamentos filosóficos, históricos, sociológicos e antropológicos na esfera do debate forense. Assim o faz para afastar o caráter interminável das discussões teóricas e metodológicas ou filosóficas, para que o processo, no âmbito judicial e no administrativo, tenham celeridade e possam chegar ao fim. A legitimidade da norma jurídica, quando examinada no âmbito do legislativo ou no debate doutrinário, não pode prescindir dos fundamentos que não devem ser apenas a expressão da volição das maiorias ocasionais. A metafísica do justo ou do Direito deve ser discutida, sim, mas no campo da zetética, não no exercício da judicatura ou da atividade administrativa. 

 3 – Algumas conclusões 

As correntes filosóficas, políticas e jurídicas atualmente na fase ascendente de mais um ciclo dos movimentos históricos, tendem a buscar legitimidade em princípios, mais do que no Direito positivo. O neoconstitucionalismo e a Nova Hermenêutica Constitucional consideram o exercício da judicatura como um espaço de operacionalização e de feitura do Direito no caso concreto, alegando que a norma, em seu caráter genérico, não atende as especificidades do caso singular, transportando o debate forense para o campo da zetética. 

O controle abstrato de constitucionalidade permitiu ao Poder Judiciário legislar negativamente. As inúmeras hipóteses de incidência da vagueza dos princípios facultaram, na prática, ao judiciário legislar positivamente. A judicialização da política não é um fenômeno brasileiro, mas internacional. A politização do judiciário é o corolário da positivação de princípios, do fortalecimento da autopoiese do Direito e das constituições analíticas e programáticas. Este é um exemplo de contemporaneidade como manifestação real de uma época e como realidade do nosso tempo, caraterizado pela politização do Judiciário, pelo ativismo judicial. Sucede que a política apaixona e divide. Decidir o que seja o justo é formular juízo de valor, que é ato político. A diferença entre decisões técnicas e políticas é que as primeiras são juízos de realidade ou de fato, enquanto as últimas são juízos de valor. 

Ser ou não ser contemporâneo é o desafio. Seguir a tendência ou esforçar-se por ser sujeito da ação na vida social e na política é a grande questão do nosso tempo. Juízo de fato bem demonstrado deve ser acatado. Juízo de valor não pode ser posto como ortodoxia, salvo quando positivado pelo devido processo legislativo e ainda assim questionável no campo doutrinário e político. 

4 – Referências bibliográficas

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1982.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.

BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política. Rio de Janeiro: Editora Campos, 2000.

BRAULDEL, Fernand. O mediterrâneo e o mundo mediterrâneo. São Paulo: Martins Fontes, 1984.

GIRARD, Renê Girard. Do mimetismo à hominização. São Paulo: É realizações, 2012.

HOBBES, Thomas. O Leviatã – ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. São Paulo: Edipro, 2015.

KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

LÉVI-STRAUSS, Claude. A Antropologia estrutural. São Paulo: Cosac-Naify, 2008.

LIPOVETSKY, Gilles. A sociedade da decepção. Barueri: Manole, 2007.

LOCKE, John. O segundo tratado sobre o governo civil. Petrópolis: Vozes, 2019.

MAQUIAVEL, N. Maquiavelli, Nicoló, 1469 – 1527. (Os pensadores). São Paulo: Nova Cultural, 1987.

MARCUSE, Herbert. Eros e civilização. Rio de Janeiro: LTC, 1982.

McLUHAN, Marshall. A primeira aldeia global. Lisboa: Casa das Letras, 2012.

NAY, Olivier. História das ideias políticas. Petrópolis: Vozes, 2007.

ORWELL, Georg. 1984. Campinas: Tricaju, 2008.


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