sexta-feira, 1 de novembro de 2019

ARTIGO - O País do Crime (RMR)


O PAÍS DO CRIME
Rui Martinho Rodrigues*


Aproximadamente sessenta mil vidas são ceifadas a cada ano. Tivemos 82.684 desaparecidos em 2017. A existência de numerosas crianças entre estes, é sugestiva de assassinatos, por ser menos frequente o abandono do lar nesta idade. O crime domina. Impõe a sua lei. Despeja famílias de suas casas.

Requisita mocinhas para serviços sexuais. Comanda presídios e os transforma em centro de comando das atividades ilícitas e de recrutamento de novos “soldados” das facções. Bandidos “elegantes” compram decisões políticas; corrompem licitações; desviam verbas públicas de suas finalidades.

O crime é discutido sob os mais diversos aspectos: desigualdade e pobreza; justificação do crime por ideólogos; impunidade; violência polícial; perda de autoridade dos pais, professores e clérigos; discussões jurídicas sobre garantismo, consequencialismo, Direito Penal do inimigo, fundamentos da punição, princípio da legalidade e eficácia do Direito Penal, teoria da imputação relacionada com a maioridade.

A impunidade, porém, persiste. Uma fração mínima dos crimes é esclarecida. Sem autor identificado não há punição. Eugênio Pacelli de Oliveira, jurista contemporâneo, não aceita a doutrina de Gunther Jakobs (1937 – vivo), do Direito Penal do inimigo, mas reconhece um dos seus fundamentos concernente ao objetivo da norma penal como sendo a preservação da normatividade social, cuja falta inviabiliza a sociabilidade, afinal, ubi societas, ibi jus e ubi jus, ibi societas. Rejeita a ênfase na finalidade retributiva da pena, contrariamente ao entendimento vulgar da doutrina de Jakobs. Afasta o sentido preventivo diretamente ligado aos bens jurídicos tutelados pela norma penal. Esta proteção se daria indiretamente, pela preservação da normatividade social em geral.

As teorias da funcionalidade da norma penal, tanto de Jakobs como de Claus Roxin (1931 – vivo), seu antípoda, pensam o Direito Penal como dirigido para uma sociedade, em um dado momento histórico, considerando-a como ela é, não como deveria ser. Não significa que necessariamente sigam o normativismo de Hans Kelsen (1881 – 1973). Apenas reconhecem que o dever ser do Direito não é um um comando originário apenas da lei, mas o reflexo dos valores da sociedade reconhecidos pelo legislador.

Reconhecer o Direito como formado por fato, valor e norma (Miguel Reale, 1910 – 2006), é admitir que os fatos e valores estão na sociedade antes da norma jurídica. Os aspectos diacrônicos, as transformações sociais, são da esfera política, devendo integrar as cogitações do legislador, integrando o Direito no campo da zetética. Émile Durkheim (1858 – 1917) via a organização social como fundada sobre normas sendo estas amparadas por valores. O jogo do bicho e as drogas ilícitas são invencíveis em face da repressão pela conformidade que têm com os valores da sociedade.

A preservação da normatividade social em geral é o único bem jurídico tutelado pela norma penal. A sociabilidade é assim assegurada. Tal ideia se harmoniza com o pensamento de Maximilian Karl Emil Weber (1864 – 1920), para quem organização é dominação, cabendo ao pesquisador distinguir o grau de legitimidade do poder. A norma penal é desacreditada pela impunidade.

O garantismo deve ser defendido como observância do devido processo legal. Este, porém, não deve inviabilizar a persecução penal. Quatro instâncias recursais, cada uma com inúmeras possibilidades de recursos procrastinatórios, promovem a impunidade e a ideia de que o crime compensa. O processo judicial deve ter decisão (Tércio Sampaio Ferraz Júnior, 1941 – vivo) e, acresce-se, deve ter consequência.


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