quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

LÍNGUA DE CAMÕES




SÉRIE
DESLIZES DA ESCRITA
Impropriedades do Discurso
(4 de 4)
Por Vianney Mesquita*


"Os escritores superficiais, como as toupeiras, julgam frequentemente ser profundos, quando estão, no entanto, demasiadamente perto da superfície". (SHENSTONE, William – West Midlands – UK - 18.02.1714; 11.02.1763)


Os exemplos deste módulo da série de artigos são anteriores à edição da obra A Escrita Acadêmica – acertos e desacertos. O texto foi preparado para servir de base a uma palestra por mim proferida na Academia Cearense da Língua Portuguesa, porém faz parte da mencionada edição, com modificações.

Eis que o escrito é reeditado, para rematar esta série de textos, ora publicado pelo blog da Academia Cearense de Literatura e Jornalismo, como demonstrativo dos dislates, muita vez, até hilariantes, da colheita dos meus consultantes na seara universitária.

Cuidei, entretanto, de desdobrar, sem prejuízo do móvel da série - transposição dos escorregos de toda ordem em trabalhos universitários as passagens histórico-culturais, aduzindo informações relevantes, talvez não consabidas pelos leitores.

“Casamento” da Santa Casa

Aforismo popular ensina: A bodas e a batizado não vá sem ser convidado.

Este substantivo feminino, aplicado quase sempre no plural (como, por exemplo, calças, bermudas, óculos, cuecas e muitos outros), procede do latim vota, votum e significa EXCLUSIVAMENTE, com pronúncia fechada (ô), celebração de casamento, festa, geralmente com banquete, para solenizar matrimônio.

As bodas de que mais se tem notícia são as de Caná, referidas na Escritura Sagrada. Outras, menos célebres – registradas nos compêndios de História e Arte – inspiraram pintores como Rafael Sânzio (As Bodas de Psique, do Palácio Farnésio – Roma), 


Eugéne Delacroix (Boda Judaica em Marrocos – Louvre) e David Teniers (Boda Campestre, dois quadros – Munique e Dresden), entre outros artistas.

Em um casamento na cidade galileia de Caná, consoante refere o Novo Testamento, Jesus Cristo operou o primeiro milagre, ao transformar água em vinho. Este prodígio sensibilizou, por exemplo, o talento inventivo de Paolo Caliari (Veronese) a pintar o notável Bodas
de Caná, no qual inclui personagens de nomeada, como o Marquês de Pescara (Fernando Francisco de Ávalos Aquino y Cardona), Leonor de Áustria (rainha de França) Tintoreto (Jacopo Robusti) e Ticiano (Veccelio).

[SANZIO, Rafael. *Urbino, 06.04.1483; + Roma, 06.04.1520; DELACROIX, Eugène. *Saint-Maurice, 26.04.1798; +Paris, 13.08.1863; TENIERS, David. *Antuérpia, 15.12.1610; +Bruxelas, 25.04.1690; VERONESE – Paolo Caliari. *Verona, 02.02.1528; +Veneza, 19.04.1588; LEONOR DE ÁUSTRIA. *Bruxelas, 15.11.1498; +Talavera, 25.02.1558; TINTORETTO – Jacob Robusti. *Veneza, 29.09.1518; +Veneza, 31.05.1594; TICIANO Vecelio. *Pieve di Cadore, ? - ?; +  1485; +Veneza, 27.08.1576; Marquês de Pescara.*Nápoles, ? - ? – 1489; + Milão, 04.11.1525].

Resulta impróprio, por conseguinte, proceder como um docente-livre de Fortaleza – universidade grande – campus de Porangabuçu – em livro de crônicas e artigos, ao parabenizar a Santa Casa de Misericórdia da Capital do Ceará pela passagem das bodas de ouro desse hospital; ou como um colunista diário, que se referiu, em 2008, às bodas de esmeralda (40 anos) da conquista, pela Seleção Brasileira, do título de tricampeão mundial de futebol, em 1970.

No primeiro caso, a inconveniência foi sanada. No outro, advertido, o jornalista registrou, agradeceu e não mais incorreu no erro.

Não será de todo inócuo, decerto, dissolver certa confusão que alguém faz, também, relativamente a bodas e jubileu.

Jubileu procede do hebraico jobel, por meio do grego iobelaios  e do latim jubilaeu. Consoante as práticas mosaicas – nesta parte inseridas no livro do Levítico – “Declarareis santo o quinquagésimo ano e proclamareis o perdão das dívidas no país para todos os habitantes. Será para vós um jubileu”. (Lev.25.10).

Com efeito, em 50 anos, havia grande e pública solenidade na qual cada um tomava posse das heranças, as dívidas eram perdoadas e os escravos alforriados, sendo aquele ano consagrado ao Senhor. (LELLO, J. LELLO, E., 1983).

Obedecendo a essa configuração histórica, jubileu passou a ser, também, a indulgência plenária e geral (em desuso) concedida pelo Papa e em circunstâncias especiais, seguidas de grandes festas. Por extensão, jubileu significa, ainda, o conjunto de merecimentos para que se obtenha este favor.

Mais extensiva se foi tornando a adoção desse nome como designativo ao quinquagésimo ano de casamento, do exercício de uma função, do tempo durante o qual uma pessoa reside em determinado local etc., tendo, atualmente, descaracterizado sua procedência bíblica, ao ponto de ser admissível, pela aplicação consagrada, tê-lo como indicativo de qualquer aniversário solene.

É fácil, pois, notar ser bem mais permissível de se empregar do que o substantivo boda.

De tal sorte, teria sido válido se houvesse o dito professor  grafado Jubileu da Santa Casa de Misericórdia, aqui na sua conotação hebraica (50 anos). Também lícito, caso o colunista de O Povo (Fortaleza) tivesse escrito “Jubileu de 40 anos da conquista, pelo Brasil, do título de tricampeão mundial de futebol”.

Por fim, é bom também se dizer, não tem abono a relação jubileu-matéria física (metal ou não), como Jubileu de cristal, ou Jubileu de ouro (conforme está em placa comemorativa dos 50 anos da Faculdade de Educação da U.F.C.) como aniversário de qualquer pessoa, evento ou coisa, ficando tal associação apenas para boda/casamento.

Faixa etária

Por inacreditável como parece, alguém utiliza, ab hoc et ab hac, a expressão faixa etária sem atentar para o seu significado preciso, isto é, intervalo de idade empregado para a categorização dos sujeitos de uma pesquisa com relação à variável  tempo de vida.

Desta forma, o pesquisador pode, em lugar de declarar a idade de cada um dos sujeitos, agrupá-los em classes, como, por exemplo, de zero a cinco anos, de seis a dez anos e por diante.

Diz-se, então, que alguém está situado na faixa etária de zero a cinco anos. É impróprio, evidentemente, assinalar, como é corrente acontecer, que uma pessoa está na faixa etária dos vinte anos.

A esse respeito, em artigo para submeter ao Conselho Editorial de uma revista, estava o seguinte: A amostra constou de homens e mulheres saudáveis, com idade entre 20 e 60 anos. O maior percentual de mulheres registrou-se na faixa etária de 30 a 45 anos (aplicação certa) enquanto a percentagem maior de homens situou-se na DÉCADA de 50 a 60 anos (expressão realçada).

Somente o descuido pode imprimir tal impropriedade.

Um pouco de atenção de quem escreve é o suficiente para que tais deslizes sejam evitados. Apenas esta desatenção explica o ocorrido com o escritor e historiógrafo lusitano Antônio José Saraiva (*Leiria, 31.12.1917; Lisboa, l7.03.1993). 

O autor de Gil Vicente e o Fim do Teatro Medieval, História da Literatura Portuguesa, entre outras obras, fez referência a [...] um mundo duvidoso, meio decadente, meio elegante, meio vicioso, que frequenta determinados salões.

Esse visibilíssimo engano conduziu Agripino Grieco (Op.Cit., 23) a comentar com sarcasmo: “[...] vê-se que tal mundo dispõe de três metades, é um mundo e meio[...].

REFERÊNCIAS

BARRETO, J.A. Esmeraldo; MESQUITA, Vianney. A Escrita Acadêmica - acertos e desacertos. Fortaleza: Prog. Edit. Casa de José de Alencar da U.F.C., 1997.

BÍBLIA SAGRADA. Jo. 2, 1-11 (Bodas de Caná). Trad. João Ferreira de Almeida. LCC Publ. Eletrônicas – http//www.culturabrasil.pro-ler.
COSTELLA, Antônio Fernando. Comunicação – do grito ao satélite. São Paulo: Mantiqueira, 1978.

DELLA NINA, A. Dicionário da sabedoria.  São Paulo: Fittipaldi, 1985.

GRIECO, Agripino. Disparates de todos nós. Rio de Janeiro: Conquista, 1968.

LELLO José; LELLO Edgard. Lello Universal. Porto: Lello & Irmão, 1983.



*Vianney Mesquita
Professor da UFC
Escritor e Jornalista
Membro da Academia Cearense 
da Língua Portuguesa
Titular da Cadeira de nº 22 da ACLJ


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