sexta-feira, 14 de março de 2025

ARTIGO - Saudade da Lucidez (RMR)

SAUDADES
DA LUCIDEZ
Parte 1
Rui Martinho Rodrigues*

 

A lucidez e o sentido das palavras 

A chamada polarização das sociedades ameaça provocar graves rupturas nas instituições políticas e jurídicas; igrejas; partidos; amizades e famílias. Trata-se de um desafio com que se depara o processo comunicativo, sem o qual não há sociedade. Não pode haver sociedade sem que os seus integrantes tenham um mínimo de comunicação entre si. Emissor e receptor de mensagens precisam ter um código comum para que haja entendimento entre eles. A desordem cognitiva ameaça as relações sociais quando o sentido das palavras se torna enigmático. 

Thomas Kuhn (1922 – 1996), na obra Estrutura das revoluções científicas, descreve a incomunicabilidade dos paradigmas de ciência. Fala como físico e como historiador da ciência. Pontifica ainda como filósofo da ciência, na condição de expoente da escola do racionalismo pós-crítico. Enfatiza que as grandes inovações científicas nunca foram reconhecidas pela comunidade científica. Galileu Galilei (1564 – 1642), quase condenado à fogueira, não é exceção, é um caso típico. Giordano Bruno (1548 – 1600), filósofo, matemático e teólogo, não teve a sorte de Galileu, foi imolado por defender, entre outras coisas, o heliocentrismo. 

Não se trata de um fenômeno dos séculos XVI e XVII, supostamente em razão de resquícios do medievalismo. Na Antiguidade Clássica Sócrates (470 a.C. – 439 a.C.) foi condenado a morte por difundir ideias que no jargão de hoje seriam rotuladas como “fake news”, desinformação, desordem informacional ou atentado às instituições democráticas. Nos dias de Galileu eram “heresias”. Louis Pasteur (1822 – 1895), cientista contemporâneo, por pouco não foi internado em um manicômio. Escapou por ser amigo de médicos e por ser manso e pacífico, que ensejou um diagnóstico com o significado equivalente a louco manso.

Sigmund Freud (1856 – 1939) foi expulso do Conselho de Medicina de Viena por motivos semelhantes aos que levaram Sócrates e Giordano Bruno, Galileu e Pasteur a severa condenação pelos seus pares: ferir a ética médica. Por tudo isso e muito mais, o físico alemão, Max Planck (1858 – 1948), chegou a dizer que a Física só cresce quando morre uma geração de físicos. Thomas Kuhn chegou a aludir a irracionalidade na ciência.

O fracasso de cientistas inovadores, quando tentaram explicar as descobertas inovadoras aos seus pares, se deu no debate com pessoas inteligentes e estudiosas. Mas, por melhores que fossem as explicações dadas, as barreiras não foram superadas, senão pelas gerações seguintes. A incomunicabilidade gerou – e também foi causada – por diversos fatores, entre os quais a barreira semântica que separa diferentes paradigmas de ciência. Maior é a discrepância de significado atribuído às palavras no campo da política, das doutrinas sociais, principalmente quando envolve de juízo de valor. 

O conflito de interesses e a leitura da realidade feita com “óculos” de paradigmas incompatíveis explicam a incomunicabilidade descrita. Teorias são lentes que condicionam a leitura da realidade. Rubem Alves (1933 – 1914) fez analogia com um pescador que achava só haver, em um certo lago, peixes pequenos. Usou anzol diminuto e só pegou peixes minúsculos. Considerou provada a “teoria” dos peixes pequenos e atribuiu ignorância ou má fé a quem dele discordava. Hoje os críticos da tese dos peixes pequenos seriam “terraplanista”. As palavras têm sentidos diferentes nos paradigmas divergentes. 

A falha na comunicação enseja conflito. Pescadores de águas turvas semeiam a belicosidade encorajados, entre outras coisas, pela interpretação da História que atribui aos conflitos o motor das transformações que impulsionam o processo civilizatório. Trata-se de entendimento que despreza os fatos. A Primeira Revolução Verde, ao semear para colher depois, foi uma solução criativa para o problema da produção de alimento. Invenção ou criatividade, não o conflito, promove o avanço da civilização. A Segunda Revolução Verde foi a irrigação. Darcy Ribeiro (1922 – 1997), na obra O processo civilizatório, menciona estas duas revoluções. 

Vishal Mangalwadi (1949 – vivo), na obra O livro que fez o seu mundo, lembra que o moinho de grãos era conhecido dos asiáticos, mas não teve o seu uso difundido porque não havia sensibilidade em face da labuta desgastante com os pilões. Não faltou conflito na Ásia, mas faltou criatividade. Nem foi a atividade bélica que promoveu, no Ocidente, a adoção do moinho em substituição aos pilões. Tampouco foi a falta de engenhosidade dos povos asiáticos e africanos que obstaculou o desenvolvimento técnico. Não faltou conflito em todos os continentes. 

Foi a ética protetora do trabalho, inspirada na tradição judaico-cristã, que estimulou a técnica e suavizou o trabalho. Max Weber, na Obra A ética protestante e o espírito do capitalismo, mostrou que os puritanos da primeira imigração dos EUA, condenavam ociosidade, gastos supérfluos e entesouramento. Isso forçou o investimento produtivo e, somada à defesa da liberdade de pesquisa, promoveu a técnica e alavancou a produtividade. A citada obra de Weber refuta a doutrina segundo a qual a organização das forças produtivas é a infraestrutura que determina toda a cultura e a organização social. E serve para infirmar a tese do conflito como motor do processo civilizatório.

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