quinta-feira, 20 de março de 2025

ARTIGO - Saudade da Lucidez - Parte 2 (RMR)

SAUDADES DA
LUCIDEZ

Parte 2


Rui Martinho Rodrigues*

A imunização cognitiva e a guerra de todos contra todos 

A incomunicabilidade dos paradigmas, que alguns chamam “imunização cognitiva”, porque o prefácio da obra Estrutura das revoluções científicas, de Thomas Kuhn, fala em “vacina contra a realidade”, tem origem em uma grande pluralidade de fatores. Merece destaque, neste estudo, o problema do significado das palavras. Não por ser o fator mais importante, mas por ser um dos mais esquecidos. A divisão das sociedades em tendências adversárias, mais do que isso, inimigas, não decorre de desentendimentos científicos, embora o nome da ciência seja usado pelas partes em conflito. 

O quadro descrito como a guerra de todos contra todos, por Thomas Hobbes (1588 – 1679), na obra O leviatã, ou simplesmente Leviatã, seria o estado de natureza, que teria sido superado pelo Estado político, por meio do pacto social, conforme as discutidas teorias contratualistas. A atual beligerância nas sociedades, ameaçando dividir instituições jurídicas e políticas, amizades e até famílias seria um retorno ao Estado de natureza. Sim, para quem considere que tal Estado seja próprio da essência da convivência humana. Sucede, todavia, que o retorno ao estado de natureza, seria a dissolução do Estado político.

A contenção da beligerância, independentemente da teoria hobbesiana, é mantida dentro de certos limites pelas instituições jurídicas, políticas, sociais, confessionais e pelos sistemas de parentesco, que formam o controle social. A sociedade, assim concebida, repousa sobre um ordenamento normativo, que por sua vez tem como alicerce um sistema axiológico. Normas e valores, entretanto, são comunicados por meio de palavras. A sociolinguística, com destaque para as contribuições de William Labov (1927 – 2004), juntamente com algumas teorias da Filosofia da linguagem, abriram uma larga avenida para a revisão da semântica no vocabulário coloquial como também no jargão das ciências da cultura. 

O discurso é uma alvenaria formada por palavras. As correntes políticas têm como objetivo a conquista, manutenção e ampliação do poder. Quem domina a linguagem exerce grande influência sobre as consciências. Ressignificar palavras tem sido parte dos projetos de poder. Os pretensos demiurgos formulam engenharias sociais e antropológicas. Querem criar uma sociedade radicalmente nova, conforme expressamente declarado na obra O mundo não tem mais tempo a perder, coletânea coordenada por Sacha Goldman e prefaciada por Fernando Henrique Cardoso. Ressignificar não basta. É preciso satanizar certos significados.

A dinâmica das línguas tem sido usada como argumento para justificar o trabalho de ressignificação do léxico. É preciso, todavia, diferenciar as transformações espontâneas, decorrentes de circunstâncias históricas e sociais, da transformação planejada e executada com o objetivo de dominação política. A linguagem jurídica não pode ser aberta às metamorfoses criadas pelos mais diversos interesses, distintos da dinâmica espontânea da língua. No campo do Direito a manipulação da semântica agride a segurança jurídica. No campo político e social leva ao domínio das consciências caracterizando o desvirtuamento do processo democrático.


No campo do Direito, os tipos penais podem ser reescritos, mas pela via legislativa, em obediência ao princípio da reserva legal. Injúrias, calunias e difamações estão tipificadas no Código penal, respectivamente nos artigos 138 e 139 e 140. Nomeá-los como “crime de ódio”, sem que exista tal tipo penal no ordenamento jurídico brasileiro, é uma clara violação do princípio da reserva legal. Não é parte do processo evolutivo espontâneo da língua. É uma tática de manipulação da opinião pública obtida por meio do aparelhamento de instituições, da intimidação e da violação do rigor metódico na produção intelectual.


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