sexta-feira, 3 de novembro de 2023

ARTIGO - Guerras e Guerra (RMR)

 GUERRAS E GUERRA
Parte 1
 GUERRAS

 Guerra é assunto que originou uma bibliografia imensa. É uma temática que pode ser examinada genericamente, como fenômeno social, político, econômico, religioso, como conduta humana, um estudo da belicosidade humana formando por guerras. Tem a complexidade resultante dos inumeráveis fatores que envolve. Situadas nos contextos históricos singulares podem ser analisadas com ênfase em um conjunto de fatores mais limitados, considerando a preponderância deles no caso específico. 

A temática da guerra 

Thomas Hobbes (1588 – 1689) destacou, na obra O leviatã, entre os fatores situados na origem dos conflitos bélicos, o um sentimento: o medo. Seria por medo de ser atacado que as partes cogitariam de atacar preventivamente. Isso até pode ser importante no caso de algumas guerras preventivas, mas não pode ser generalizado. Tucídides (460 a.C.– 400 a.C.), observando os fatos, concluiu que a competição por hegemonia, quando uma potência emergente ameaça a liderança estabelecida, é uma situação tendente ao conflito. Esta tese foi nomeada por Graham T. Alisson (1940 – vivo) como “armadilha de Tucídides”, que juntamente com outros fatores pode ajudar a explicar algumas conflagrações, como as duas guerras mundiais, quando a Alemanha, potência emergente, ameaçava a liderança do Reino Unido. 

Não devemos banalizar o conceito de guerra. Mas conflitos em geral são comparáveis aos choques armados e estão em toda parte. No interior de entidades e instituições e nos mais diversos grupos o conflito se faz presente. Famílias, clãs, tribos, Estados, escolas, igrejas, agremiações políticas, empresas são palcos de conflitos internos podendo envolver-se também em lutas externas. A democracia teria ensaiado os primeiros passos quando os gregos escolheram substituir o uso da força por escolhas racionais, enveredando pelo debate seguido de votação, segundo Olivier Nay (vivo), na obra “História das ideias políticas, fato que poderia ensejar a visão segundo a qual a política é a continuação da guerra por outros meios, quais sejam o debate e a negociação racional, invertendo a lógica do estrategista prussiano Carl P. G. von Clausewitz (1780 – 1831), na obra Da Guerra, para quem a guerra é a continuação da política por outros meios. 

As relações sociais – e consequentemente a História – têm sido vista por alguns como movidas pelo conflito, conforme o pensamento segundo o qual toda História se resume na história da luta de Classes (Karl H. Marx, 1818 – 1883). Trata-se de duplo reducionismo, limitando toda experiência humana ao conflito e submetendo a dinâmica histórico-social às classes sociais. Toda teoria tem alguma aporia. Colocar o conflito como mais influente do que a solução de problemas revela mais do que reducionismo. Desnuda um viés bastante significativo. 

As grandes transformações, como a primeira revolução verde, quando a agricultura surgiu como solução de problema, permitindo a superação da vida nômade, não se fez pela via do conflito. A segunda revolução verde, com o advento da irrigação, dando origem ao que Darcy Ribeiro (1922 – 1997), na obra O processo civilizatório, classifica como civilizações do regadio, que deu origem aos impérios, também foi fruto de uma solução de um problema: maximizar a produtividade, permitindo liberar mão de obra para outras atividades que não a produção de alimentos. 

O pós-guerra 

Muitos são os efeitos das guerras. Produzir outras guerras é uma destas consequências. A Alsácia-Lorena, que pertenceu ao Sacro Império Romano-Germânico, foi transferido para a França de Luís XIV, pelos tratados de Vestfália (1648) que puseram fim à guerra dos Trinta Anos, que é uma denominação abrangente para diversas guerras travadas entre 1618 e 1648, na Europa. Depois devolvido aos alemães no Tratado de Frankfurt (1871), após a vitória da Prússia sobre a França. Mas voltaria para os franceses pelo Tratado de Versalhes, em 1918, após a derrota da Alemanha na I Guerra Mundial. A II Guerra Mundial devolveria temporariamente a Alsácia-Lorena aos alemães, mas logo voltaria para a França com a derrota dos nazistas em 1945. Este não é um caso excepcional, mas um fato observável em outras situações, podendo envolver outros atores que não os do primeiro episódio. 

Os britânicos atacaram a China nas sucessivas guerras do ópio, no século XIX. A desordem gerada promoveu a revolta que ensejaria uma intervenção multinacional chamada “Guerra dos Boxers”, de 1899-1901. A fragilização da China pelas guerras do ópio então já havia aberto a porta para a agressão japonesa ao Império chinês em 1895, seguido de nova guerra sino-japonesa de 1931-1932 e finalmente a invasão da China pelo Japão em 1937. Guerras podem gerar ciclos de guerras.

Guerras, estritamente no sentido de conflito armado, causam muitos danos. Perdas materiais e humanas são lembradas frequentemente. Órfãos, viúvas resultantes das mortes, mutilados, transtornos pós-traumáticos, destruição material, inflação, recessão, degradação dos costumes e outros problemas são inevitáveis. Deixam ainda ressentimentos perigosos. Tudo isso levaria o general William T. Sherman (1820 – 1891), estrategista destacado entre os comandantes das forças União, na Guerra de Secessão dos EUA, a dizer que a guerra (genericamente falando) é cruel; e quanto mais cruel mais breve. 

Um dos efeitos mais graves das guerras é a inconformidade com os interesses e paixões contrariadas. Isso não apenas fertiliza o terreno para novos conflitos. Faz pior: causa imunização cognitiva, exacerbando paixões que produzem cegueira intelectual autêntica ou simulada como tática. 

A razão mutilada 

É trivial reconhecer que a primeira vítima, nas guerras, é a verdade. A realidade é pior: a percepção também é gravemente ferida. Conflitos desencadeiam paixões, substituindo o analista pelo torcedor. Os peritos em teoria da comunicação entram em cena para iludir com sofisticadas técnicas de manipulação. Contorcionismo hermenêuticos enganam principalmente gente letrada, mais assediada pelos (de)formadores de opinião. Cosmovisões diferentes, paradigmas teóricos e metodológicos alimentam o viés de confirmação que tornam o engano insanável. A incomunicabilidade dos paradigmas é muito bem explicada por Thomas S. Kuhn (1922 – 1996), na obra A estrutura das revoluções científicas. 

Não temos uma razão unívoca aplicável a todos os problemas políticos, jurídicos, sociais, econômicos ou morais relacionados com as guerras. É preciso exercitar rigorosa vigilância epistemológica para preservar um mínimo de lucidez diante das guerras. A semântica das palavras deve ser objeto de máxima atenção. A propaganda lança mão da ressignificação dos conceitos para legitimar falácias. Genocídio, opressão, ocupação, prisão, crime de guerra são algumas das palavras usadas na guerra midiática. (Continua)

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