quarta-feira, 2 de março de 2022

ARTIGO - A Hipertrofia da Política (RMR)

 A HIPERTROFIA
DA POLÍTICA
Rui Martinho Rodrigues*

 

Arno Dal Ri Júnior (1974 – vivo), em “O Estado e Seus Inimigos”, discorre sobre a criminalização de condutas e sentimentos políticos, tipos penais abertos e direito de defesa do réu nos crimes contra o Estado. Na Grécia Antiga tais crimes tinham caráter religioso, ofendiam divindades sob a graça das quais os monarcas se encontravam. Autores renomados consideram a lei penal ateniense e a espartana sem conotação religiosa, mas o sujeito passivo dos crimes contra o Estado era o seu respectivo orago. 

O sentido político de tal norma aparece nos escritos de Platão (428 a.C.– 348 a.C.), “A República” e “As Leis”, classificando os que tentam submeter a polis a uma facção política como inimigos do Estado. O Direito Romano situava o crime de lesa-majestade próximo de sacrilégio, pelo status divino dos imperadores. Na Idade Média o sentido religioso de tais crimes era ligado ao direito divino dos reis. 

Na Antiguidade os crimes lesa-majestade eram constituídos por ataques ao rei; falsificação de moeda; críticas aos governantes; sentimentos contrários ao Estado ou ao monarca. Era retributivo e utilitário, já que pretendia atemorizar com penas crudelíssimas (prevenção primária, voltada para quem não delinquiu). As penas alcançavam as famílias do condenado com confisco de bens. 

A modernidade focou na prevenção secundária (recuperação do agente), era utilitária, enfatizou o direito de defesa, criticou a lei vaga e indeterminada como ameaça à segurança jurídica (Cesare Beccaria, 1738 – 1794; Claude A. Helvétius, 1715 – 1771). Denunciou o absolutismo de Henrique VIII e a dureza de Richelieu (1585 – 1642). Montesquieu (1689 – 1755) criticou a criminalização de pensamento e da intenção.


A Revolução Francesa prometeu igualdade, liberdade e fraternidade. Jean-Paul Marat (1743 – 1793), antes de chegar ao poder, defendeu a função social da propriedade e a vitimização do transgressor, dizendo que quem só recebe da sociedade desvantagens não deve se submeter às leis (citado por Arno Dal Ri Júnior). Marat era um influente jurista da Revolução e veio a ser um dos nomes principais do terror jacobino, quando chegou ao poder. 

Aqueles que invocavam direitos do homem, liberdade, igualdade e fraternidade refizeram, sob novos argumentos, tipos penais que antes combatiam: segurança do Estado, segundo Dal Ri, na obra “O Estado e Seus Inimigos”, até “incivismo” e “condutas antirrevolucionárias” foram tipificadas como crime. “Foi criado o Comitê de Vigilância Geral (...) com o fim de reprimir crimes políticos; prisão sem processo; polícia política”(p.185); Tribunal Criminal Extraordinário (...) composto por juízes nomeados pela Convenção, (...) um apêndice do poder político” (p. 187); e a lei dos suspeitos criminalizavam “os que não tiveram parte ativa no que interessava a revolução”; os indiferentes [crime de sentimento, atual “crime de ódio”]; “os que nada fizeram contra a liberdade, mas nada fizeram por ela” (...); que “falam com má vontade das autoridades” [delito de opinião, de crítica às autoridades]; “os que não demonstrarem constantemente ter aderido à revolução” [crime de consciência] e os “condenados por delito, ainda que tenham cumprido a pena”. 

Comitês revolucionários faziam listas de suspeitos. “A presunção de inocência foi substituída pela presunção de culpa”. O republicano “não fica limitado pelas leis da República [interpretação conforme?] (...). Devem se desfazer as ligações individuais (...). A voz do sangue se cala diante da voz da pátria. (...). [É] dever dos filhos denunciar seus pais...” (Dal Ri, p. 192 – 194). A hipertrofia da política corrompe a Justiça. 

Transfiguração dos agentes políticos e ressignificação de conceitos em “A Revolução dos Bichos”, de Georg Orwell (Eric Arthur Blair, 1903 – 1950), descreve a transformação de libertários em liberticidas. “A Nova Classe”, de Milovan Djlas (1911 – 1995), mostra isso no regime de Tito, na Iugoslávia. “Eros e Civilização”, de Herbert Marcuse (1898 – 1979) conclui que as revoluções falham, são traídas e geram mais repressão. 

O reinado jacobino do terror não foi desvio individual dos revolucionários. É da dinâmica dos movimentos que desclassificam eleitores como gado, de quem se presume sábio, mas sempre fracassa.

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